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"Wildling: A Última Criatura"


Os primeiros minutos de “Wildling” sugerem inúmeros caminhos possíveis. Estamos no interior de um quarto de pequenas dimensões, onde se sente “um ar de morte silenciosa” (empregando as palavras imortais de Reynolds Woodcock). Dito de outro modo, a câmara de Fritz Böhm aparenta querer introduzir-nos a uma masmorra decadente. No entanto, é lá que encontramos Anna (Bel Powley, numa composição de muitas e intrincadas nuances emocionais), uma menina que nunca abandonou esse espaço claustrofóbico. Porquê? Pois bem, porque segundo o seu pai (Brad Dourif, um veterano, com estatuto de ícone, a emprestar uma certa grandiloquência teatral a cada uma das suas cenas), lá fora existem monstros esfomeados, que comeram todas as crianças do mundo, menos ela.


É um começo francamente engenhoso. Não só por estabelecer de imediato uma atmosfera de perturbante desconfiança (aquilo que nos comunicam é tudo o que sabemos, logo somos colocados na mesma situação que a protagonista), mas, também por abrir a porta a múltiplos seguimentos. Assim sendo, o que é “Wildling: A Última Criatura”? Uma antiquada película de monstros? Uma crónica sobre os horrores quotidianos do abuso de menores? Um conto fantasmagórico? Ou, uma odisseia pós-apocalíptica? Apetece mesmo dizer que podia resumir-se a qualquer uma dessas genéricas descrições, contudo, o trabalho de Böhm denota ambições bem maiores, evidenciando um talentoso artesão que procura conceber objetos de cinema que não encaixem nas gavetas do costume.


Ao invés, a sua primeira longa-metragem propõe uma peculiar experiência tonal, que emprega as mais variadas componentes do cinema de terror (estranhas e medonhas criaturas que podem ou não existir, fenómenos inexplicáveis, o medo do desconhecido a libertar os recantos mais violentos da psique humana), para estabelecer uma comovente e sanguinolenta parábola acerca das muitas agruras do crescimento e da descoberta sexual, que possui a crueza de um história assombrada classicista, e também as ambiguidades poéticas, que reforçam os sedutores enigmas de uma bonita e visceral fábula.


Realização: Fritz Böhm

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