Avançar para o conteúdo principal
"O Cavalheiro com Arma", de David Lowery


Quem conhecer o cinema do americano David Lowery, certamente, reconhecerá nele um representante de uma certa corrente humanista que encontra as suas raízes no trabalho de autores como Terrence Malick ou Richard Linklater. No entanto, o texano possui uma outra paixão cinéfila: os westerns. Aqueles contos sanguinolentos de heróis incorruptiveis que lutavam contra as instituições que os oprimiam. Contudo, os seus filmes sempre foram mais contemplativos e menos contestatários, por exemplo, veja-se o comovente “História de um Fantasma”, olhar melancólico sobre a condição humana em tom fantasmático. Acontece que, tudo muda no estonteante “O Cavalheiro com Arma”. Um melodrama gentil, que reinventa Robert Redford como um charmoso e simpatiquíssimo cowboy contemporâneo, que rouba bancos, não por necessidade, mas por prazer.

Chamou-se Forrest Tucker (1920-2004), escapou 16 vezes de diferentes recintos prisionais e nunca perdeu a emoção que sentia quando roubava um banco. O processo que empregava tinha tanto de simples como rocambolesco: entrar no estabelecimento escolhido, elegantemente vestido e sempre acompanhado por dois itens vitais, um bigode falso e um chapéu, informar os responsáveis de que possui uma pistola (que nunca usou), pedir dinheiro suficiente para encher a sua pasta e sair de forma tão discreta e calma como entrou. Enfim, convenhamos, que contar a sua história nunca seria uma tarefa simples, no entanto, Lowery acompanha os acontecimentos com um humanismo silencioso e grácil, dotado de uma inteligência e ligeireza raras, que nos divertem e comovem, e Redford consegue mesmo pegar num homem de práticas criminosas, socialmente condenáveis e puníveis e torna-lo num bom malandro, com um charme ao qual não pudemos resistir.


Redford caminha pelos inevitavelmente curtos 93 minutos que compõem “O Cavalheiro com Arma” com uma graciosidade admirável, encerrando uma carreira de quase 60 anos com um filme alternadamente melancólico e hilariante sobre a arte de viver, que goza ainda de um dos melhores elencos que vimos agraciar os nossos ecrãs nos últimos tempos. Da encantadora Sissy Spacek, no papel da paciente Jewel, viúva por quem Tucker se sentirá atraído, ao sempre excelente Casey Affleck (o ator fetiche de Lowery), como um detetive afincado, bom marido e pai extremoso, que persegue Forrest Tucker. E que quanto mais se aproxima, mais vai simpatizando com o cavalheiresco fora-da-lei.

"O Cavalheiro com Arma" é um imenso adeus. 

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “The Old Man and the Gun”
Realização: David Lowery
Argumento: David Lowery
Elenco: Robert RedfordCasey AffleckDanny GloverTika SumpterTom WaitsSissy Spacek
Ano de Produção: 2018
País: EUA
Duração: 93 minutos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)