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"Vox Lux", de Brady Corbet


Que papel desempenha o espetador nos filmes que escolhe experienciar? Porventura, assemelhar-se-á a uma pergunta meramente académica, interessante apenas para os mais obsessivos teóricos. No entanto, qualquer autor digno desse honroso título necessita de conseguir assumir uma posição perante tamanha interrogação. Uns encaram o seu público como um conjunto de participantes ativos num processo de reflexão, outros como confidentes a quem é possível comunicar até os desejos e incertezas mais obscuros. Escusado será dizer, ambas opções viáveis e potencialmente fascinantes. Contudo, o caso de Brady Corbet é outro. Aos olhos do californiano, o ato mais poderoso que pudemos levar a cabo é mesmo limitarmo-nos a ver e assumir a posição de “testemunhas”. Na sua primeira longa-metragem, “A Infância de um Líder”, guiávamo-nos pelos corredores da luxuosa residência de uma família burguesa, na Europa do Século XX, cujo quotidiano ia sendo lentamente contaminado pelas vontades perversas de uma criança, que encapsulava em si as sementes do fascismo que eventualmente corroeu o nosso continente nos anos 20 e 30. Quase nunca abandonávamos aquele recinto desencantado, contudo, saíamos com a sensação de quem foi exposto a uma experiência doentia. Ao longo de uns perturbantes 115 minutos contemplamos o nascimento do Mal.

Alguns anos depois Corbet assina um segundo filme, intitulado “Vox Lux”, que se autoproclama como “Um Retrato do Século XXI”. Isto é, um novo prolongamento desse seu fascínio historicista que permanece alheio às entediantes convenções e rotinas do género. Desta vez, não estamos na França de 1918, mas sim nos Estados Unidos, em 1999, quando Celeste Montgomery consegue sobreviver miraculosamente a um sanguinolento massacre escolar (encenado como uma réplica quase exata do que ocorreu no Liceu de Columbine, a 20 de abril de… 1999), Durante uma cerimónia fúnebre, Celeste emociona os presentes (e o mundo que a acompanha pela televisão) ao entoar uma canção acerca da experiência traumática que a cicatrizou literal e metaforicamente. A música é abraçada por uma sociedade em busca de uma forma suficientemente vã de expressar a sua melancolia face à violência epidémica que a consome e Celeste transforma-se numa estrela, que milhões de fãs (ou fanáticos) encaram como uma Deusa. Nos 18 anos que se seguem, a lente do cinematógrafo Lol Crawley cola-se à epiderme da cantora, seguindo os seus movimentos erráticos e convulsões íntimas, até quando os mesmos começam a ganhar contornos universais. Como assim? Pois bem, a começar na sua ascensão meteórica até ao estrelato e terminar nos seus embates constantes com o niilismo da brutalidade quotidiana (sejam os atentados demasiado frequentes ou as tendências vampíricas de alguma comunicação social), Celeste é a cara e o corpo do seu país. Um espelho retorcido no qual o americano comum poderá projetar os seus fantasmas…

Resumindo de maneira necessariamente esquemática, se “A Infância de um Líder” dissecava a aniquilação política, social e moral da Europa do século XX, então “Vox Lux” vem anunciar o falecimento prematuro da América contemporânea.


Seguindo essa linha de pensamento, convenhamos, que não falta mesmo nenhum elemento a este “cocktail”, que tanto levanta preocupações atuais (a acumular aos problemas previamente mencionados, Corbet adiciona ainda, por exemplo, os avanços dos novos movimentos populistas, que ambicionam aprisionar-nos numa nova “Idade das Trevas”), como recupera temas fundamentalmente centrais do filme que o antecede, como a ideia do carisma enquanto veículo para a manipulação mental das massas, aqui consubstanciada na figura de uma vedeta da música pop, que à semelhança das personagens de “A Infância de um Líder” vive num sufoco perpetuo, onde a danação aparenta ser uma premonição impossível de contrariar (só não caracterizamos “Vox Lux” como uma tragédia grega, porque nunca pudemos garantir se Celeste é responsável pela espiral destrutiva em que se encontra, ou se se resume a um mero peão num jogo viciado). Para tal, dividindo a narrativa em atos, muito bem narrados por Willem Dafoe (possuidor de uma certa grandiloquência teatral que impressiona), que desembocam num fresco silenciosamente devastador, a meio caminho entre Lars Von Trier (com quem Corbet colaborou em “Melancolia”) e John Cassavetes (sentimos ecos de “Mulher Sob Influência”, em particular), trespassado por uma atmosfera de assombração fantasmática que deve mais ao terror (pensamos em Roman Polanski ou Andrzej Żuławski) que ao melodrama.

Aliás, o elemento mais curioso de “Vox Lux” é mesmo a inteligência com que evita as armadilhas do chamado “filme de tema”, que aproxima os acontecimentos do campo da fábula. Acima de tudo, trata-se do conto de uma rapariga cuja inocência se desvanece à medida que a sua nação vai sendo iniciada à espetacularização quase ritualizada da desgraça. Também, por isso, importa desenhar uma última conexão com “A Infância de um Líder”. Novamente, por mais que a mise en scène intoxicante e ostensiva de Brady Corbet deixe qualquer um enamorado, tudo se desmoronaria caso não fossem os atores e o seu meticuloso labor, especialmente, Raffey Cassidy e Natalie Portman que “partilham” a personagem central (a primeira interpreta-a como adolescente, a segunda como adulta) com elegância e graça, apresentando um duo de enigmáticas composições, que ilustram brilhantemente uma mulher que se mantém um enigmático paradoxo. Alternadamente amorosa e cruel, sensata e infantil, transparente e enganadora.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Vox Lux”
Realização: Brady Corbet
Argumento: Brady Corbet
Elenco: Natalie Portman, Jude Law, Stacy Martin, Jennifer Ehle, Raffey Cassidy, Willem Dafoe
Ano de Produção: 2018
País: EUA
Duração: 114 minutos

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