"The House That Jack Built: A Casa de Jack", de Lars Von Trier
Aquando da passagem de “Melancolia” pelo Festival de Cannes de 2011, o dinamarquês Lars Von Trier protagonizou um dos momentos mais rocambolescos da história do evento, quando confessou sentir alguma simpatia por Adolf Hitler. Acontece que, o sucedido se resumiu a uma tentativa jocosa de provocar a imprensa. No entanto, as repercussões dessa brincadeira inocente continuam mesmo a promover clivagens insuperáveis entre os seus espetadores. Nesse sentido, é expectável que alguns dos admiradores do cineasta (entre os quais nos incluímos) tentem argumentar que importará encarar “The House that Jack Built” (lançado com o subtítulo "A Casa de Jack") somente como um “filme normal”. Contudo, apetece-nos dizer que Von Trier pretende precisamente o oposto. Porquê? Pois bem, citando o próprio autor: “O Jack sou eu, a única diferença é que não mato pessoas.”
Nesse sentido, convenhamos, que “The House that Jack Built” não convencerá nenhum dos detratores do seu autor, e possui mesmo um trio de ingredientes que podem ser particularmente chocantes no contexto contemporâneo. Nomeadamente, o estatuto das personagens femininas, sempre desenhadas como vítimas pouco ou nada inteligentes do intelecto perverso do protagonista, uma cena sanguinolenta a culminar no homicídio de duas crianças e a evocação do nazismo e das suas conquistas arquitetónicas. Isto é, ao encenar a odisseia interior de um serial killer (Matt Dillon) que vai partilhando "cinco incidentes escolhidos aleatoriamente ao longo de 12 anos" com uma versão do poeta Virgílio (Bruno Ganz), à medida que este o conduz através dos vários círculos do inferno, Von Trier evoca todos os traços que conhecemos da sua personalidade (as depressões que já enfrentou, o síndroma obsessivo-compulsivo e a visão da natureza como um “éden” pensado por Satanás) e as acusações que tendem a ser atiradas contra o cinema que concebe (a misoginia, o sadismo, a misantropia...), para sublimar o trabalho perpetuamente confessional que tem vindo a desenvolver e criar um subgénero só seu: a autobiografia imaginada.
Nesse sentido, convenhamos, que “The House that Jack Built” não convencerá nenhum dos detratores do seu autor, e possui mesmo um trio de ingredientes que podem ser particularmente chocantes no contexto contemporâneo. Nomeadamente, o estatuto das personagens femininas, sempre desenhadas como vítimas pouco ou nada inteligentes do intelecto perverso do protagonista, uma cena sanguinolenta a culminar no homicídio de duas crianças e a evocação do nazismo e das suas conquistas arquitetónicas. Isto é, ao encenar a odisseia interior de um serial killer (Matt Dillon) que vai partilhando "cinco incidentes escolhidos aleatoriamente ao longo de 12 anos" com uma versão do poeta Virgílio (Bruno Ganz), à medida que este o conduz através dos vários círculos do inferno, Von Trier evoca todos os traços que conhecemos da sua personalidade (as depressões que já enfrentou, o síndroma obsessivo-compulsivo e a visão da natureza como um “éden” pensado por Satanás) e as acusações que tendem a ser atiradas contra o cinema que concebe (a misoginia, o sadismo, a misantropia...), para sublimar o trabalho perpetuamente confessional que tem vindo a desenvolver e criar um subgénero só seu: a autobiografia imaginada.
Para tal, construindo uma personagem que já se encontra aprisionada a um inferno inescapável, mesmo antes de ser transportado para esse terreno metafisico. Um génio que vai sempre sucumbindo às suas falhas, impossibilitando qualquer processo redentor. Também, por isso, o seu quotidiano não nos é apresentado como uma sucessão de peripécias perturbantes, mas sim como uma desconstrução tragicómica da condição de um homem só, que existe como um paradoxo vivo, encapsulando em si dois instintos aparentemente contrários, o da criação (representado pela sua vontade de criar objetos transcendentes, seja a casa titular ou as suas fotografias) e o da destruição (correspondente aos impulsos homicidas que sente), que eventualmente conduzem a narrativa e o espetador a embarcar em duas jornadas bastante distintas de reflexão. Uma sobre a necessidade (ou futilidade) de uma posição moral na arte. Outra em torno das fronteiras sempre ténues entre o Bem e o Mal. Ambas extraordinariamente complexas peças de uma filmografia que nunca evitou temáticas difíceis.
Se quisermos dar importância aos rumores que se ouvem, “The House that Jack Built” pode ser a última longa-metragem do seu autor. Enfim, seria francamente trágico se assim fosse, contudo, reconheçamos que poucos fecharam os seus cânones de forma tão eloquente. Ao acompanharmos o formidável Matt Dillon durante estes 152 minutos, assistimos também ao culminar de toda uma filmografia. Uma celebração de 5 décadas de experimentação e um lamento pelo mundo que fica. Aliás, como diz o protagonista num momento estonteante em que a câmara de Manuel Alberto Claro (um colaborador regular do realizador dinamarquês) se aproxima de uma paisagem simultaneamente realista e artificiosa (quase pós-apocalíptica), “Neste mundo horrendo, ninguém quer saber de nada.”
Se quisermos dar importância aos rumores que se ouvem, “The House that Jack Built” pode ser a última longa-metragem do seu autor. Enfim, seria francamente trágico se assim fosse, contudo, reconheçamos que poucos fecharam os seus cânones de forma tão eloquente. Ao acompanharmos o formidável Matt Dillon durante estes 152 minutos, assistimos também ao culminar de toda uma filmografia. Uma celebração de 5 décadas de experimentação e um lamento pelo mundo que fica. Aliás, como diz o protagonista num momento estonteante em que a câmara de Manuel Alberto Claro (um colaborador regular do realizador dinamarquês) se aproxima de uma paisagem simultaneamente realista e artificiosa (quase pós-apocalíptica), “Neste mundo horrendo, ninguém quer saber de nada.”
Texto de Miguel Anjos
Título Original: “The House that Jack Built”
Realização: Lars Von Trier
Argumento: Lars Von Trier, Jenle Hallund
Elenco: Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman, Siobhan Fallon Hogan, Sofie Gråbøl, Riley Keough
Ano de Produção: 2018
País: Dinamarca/França/Alemanha/Suécia
Duração: 152 minutos
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