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"A Pereira Brava", de Nuri Bilge Ceylan


A palavra que melhor define aquilo de que o espetador se deve munir ao entrar numa projeção de “A Pereira Brava” é “paciência”. Porquê? Pois bem, porque o turco Nuri Bilge Ceylan é mesmo um cineasta da passagem do tempo, do seu carácter inexorável, do modo como somos quem somos (e imaginamos ser) a partir da consciência que temos (ou não) do papel que representamos nessa incessante voragem. Entende-se, portanto, que os seus filmes prefiram adotar um ritmo lento, que nos auxilia a entrar “de mansinho” nos pequenos dramas quotidianos dos habitantes dos recantos mais remotos e desencantados da Turquia, onde começaremos a entender os ressentimentos, frustrações e arrependimentos que parecem mesmo pautar (e condenar) as vidas das personagens que preenchem as suas minuciosas narrativas. Por isso, as mesmas acabam também por assumir características que as aproximam dos chamados medicamentos de ação lenta, que demoram até produzirem o efeito desejado. Isto é, Nuri Bilge Ceylan encontra-se em completo domínio do seu métier, mas apenas um público atento e paciente poderá experienciar o seu cinema como é suposto.

Seguindo essa linha de pensamento, “A Pereira Brava” pode ser encarado como um prolongamento das muitas obsessões de Ceylan, especialmente, do anterior “Sono de Inverno”, com quem partilha até alguns pontos narrativos em comum (um amor não correspondido, o espaço familiar que se torna num teatro de infindáveis conflitos, a escrita como um sonho utópico e redentor que nunca se materializa como esperado, etc.). Em causa, está a odisseia de Sinan (Dogu Demirkol) que, depois de concluir os seus estudos, regressa à sua cidade natal (Çanakkale, a mesma onde nasceu e cresceu o cineasta), para encontrar financiamento para editar o seu primeiro romance, contudo, ao mesmo tempo que tenta completar essa missão terá também de enfrentar a mesquinhez do dia-a-dia, definir um rumo para a sua turbulenta existência e lidar com o pai (Murat Cemcir), um outrora respeitado professor primário, cujas dividas de jogo envergonham e comprometem o rapaz, a mãe (Bennu Yildirimlar) e da irmã mais nova (Asena Keskinci). O que se segue é uma sucessão de longos e fascinantes diálogos entre Sinan e uma extensa galeria de personagens (dois imãs, um romancista envelhecido, um amigo de infância que foi trabalhar para a polícia de choque, entre muitos outros), que o levam a percorrer um caminho reflexivo em direção a uma clareza que pode ou não atingir.


Os apreciadores da maneira como Ceylan acompanhava o seu olhar contemplativo com silêncios quase intermináveis (uma das qualidades mais impressionantes das suas primeiras longas-metragens), porventura, ficarão espantados ao descobrir uma versão consideravelmente mais palavrosa do autor, que arranja forma de colocar o seu herói trágico a “saltitar” entre diálogos pensativos e melancólicos com a multiplicidade de personagens que o rodeia, no entanto, até aí somos confrontados com elevadas doses de boa subversão. Afinal, o que importa em “A Pereira Brava” (o título, já agora, deriva do romance que Sinan quer publicar) é aquilo que fica por dizer, seja porque é impossível verbaliza-lo ou porque fazê-lo dói demais, e é precisamente aí que vamos encontrar a contradição sob a qual Ceylan faz um cinema a meio caminho entre a intelectualidade sisuda e autorreflexiva e uma componente visceral, onírica até, que parece almejar uma certa transcendência que já pertence ao domínio das emoções.

Faz sentido, por isso, que este seu conto sobre gente que se debate em desespero sem saber como escapar às suas frustrações, abandone todos e quaisquer convencionalismos, para passar a assumir uma estrutura quase episódica, dividindo-se, assim, em momentos que nos comovem, por vezes, sem sabermos como. Uma coisa é certa, D.W. Griffith terá um dia dito que “o grande problema dos filmes modernos é a falta de beleza, a beleza do vento a soprar nas árvores, o pequeno movimento de um belo sopro nas flores delas, isso foi completamente esquecido”. Pois bem, a avaliar pela cena impressionista em que Ceylan emprega o vento, que ora sopra nas árvores, ora nos cabelos da rapariga de quem Sinan se despede para sempre, antes de a ver partir definitivamente para um futuro que não o pode integrar, por si só bastaria para que averiguássemos que ainda existem autores capazes de se manterem fieis às suas próprias regras, sem esqueceram os preciosos ensinamentos dos mestres.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Ahlat Agaci”
Realização: Nuri Bilge Ceylan
Argumento: Akin Aksu, Ebru Ceylan, Nuri Bilge Ceylan
Elenco: Dogu Demirkol, Murat Cemcir, Bennu Yildirimlar, Asena Keskinci, Hazar Ergüçlü
Duração: 188 minutos
País: Turquia, República da Macedónia, França, Alemanha, Bósnia Herzegovina, Bulgária, Suécia

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