Avançar para o conteúdo principal
"Na Fronteira", de Ali Abbasi


Habituámo-nos a encontrar contos acerca de indivíduos que são remetidos à solidão devido a características físicas ou intelectuais que os distinguem dos seus pares e, em última instância, os lançam em aventuras fantasiosas que lhes permitem afirmar a sua identidade perante quem os oprime. É um conceito como qualquer outro, contudo, parece que todos se contentam em filmá-lo num academismo estético e ideológico que não inquieta ninguém, transformando o que podiam ser perturbantes olhares sobre os fantasmas do conformismo e preconceito em fábulas maniqueístas, inócuas e inofensivas.

A parábola como via para exorcizar os muitos demónios da intolerância começou mesmo a recorrer um sentimentalismo fútil, a ponto de nos levar a questionar onde andam os herdeiros de um autor como Tod Browning (1880–1962), que nunca sentiu a necessidade de menorizar a violência dos mecanismos repressivos do ódio, nem de tornar os seus heróis relutantes em vítimas passivas e respeitosas, que se limitam a aceitar o horror a que são submetidas de forma quase masoquista. Ao encenar o notável “Na Fronteira”, Ali Abbasi assume-se como um descendente digno de tão peculiar e vital legado.


Estamos numa Dinamarca de conto de fadas, onde os humanos convivem com trolls como Tina, a protagonista e heroína, que trabalha no serviço de fronteiras, porque o seu extraordinário olfato lhe permite detetar a ansiedade ou o medo nos viajantes. Ela fareja como um cão, por isso, auxilia as autoridades a desmantelar uma rede de pedofilia. No entanto, esses dons carregam consigo um preço físico. O seu rosto é deformado, os dentes protuberantes, e a vagina esconde um pénis que dela cresce no momento da cópula. Tina pensa que essas peculiaridades resultam de uma desordem de cromossomas, contudo, quando conhece um estranho homem que parece encontrar-se aprisionado à mesma condição de estranheza, embarca numa viagem em direção às suas origens…

Entre o realismo mais marmóreo e a efervescência da fábula, Abbasi abandona todas e quaisquer convenções estéticas ou narrativas para construir uma experiência que não se assemelha a nenhuma outra, funcionando sempre num impressionante equilíbrio entre uma componente abertamente política (o grotesco que acompanha todas as cenas é uma alegoria para todos os males, ou melhor, é um motivo para versar acerca deles) e, consequentemente, intelectual, e uma vertente surpreendentemente emocional, alicerçada num requintadíssimo trabalho de mise en scène, que privilegia os elementos sensoriais que pautam a jornada de Tina. Aliás, o momento mais comovente e desconcertante do todo é o melhor exemplo disso mesmo: dois corpos não-humanos, que descobrem a sua sexualidade, por entre toques, odores e fluidos, tudo num panorama composto por um bosque denso, folhas mortas e musgo húmido.


Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Gräns"
Realização: Ali Abbasi
Argumento: Ali Abbasi, Isabella Eklöf
Elenco: Eva Melander, Eero Milonoff, Jörgen Thorsson
Duração: 110 minutos
País: Suécia, Dinamarca
Ano de Produção: 2018

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...