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"Nós", de Jordan Peele


“Nós” é uma tradução literal e correta do original “Us”, mas na passagem do inglês para o português perde-se uma nuance essencial para entender o cinema de Jordan Peele. Acontece que, o autor escolheu um título que também reproduz as iniciais de um país que se construiu a partir da utopia da união perfeita das suas comunidades, isto é, dos seus "United States". Contudo, será essa união possível? É uma questão que já ecoava na sua primeira longa-metragem, “Foge” (que lhe valeu um Óscar de Melhor Argumento Original), no entanto, em “Nós” Peele abandona as preocupações raciais que tomavam conta desse filme, para abraçar outras vertentes temáticas que providenciam a esta sanguinolenta parábola de muitos medos e incertezas uma frescura muito própria.

Em causa, está o calvário de uma família de classe média, composta pelo casal Adelaide (Lupita Nyong'o), Gabe (Winston Duke) e pelos seus dois filhos, Jason (Evan Alexander) e Zora (Shahadi Wright Joseph), que rumam em direção à sua casa de praia. Tudo parece estar a correr de forma ligeira e descontraída, até que, à noite, no jardim, surge uma outra família, também de quatro elementos, contemplando a casa em absoluta imobilidade… Mantendo algum secretismo (“Nós” inclui múltiplas e inesperadas surpresas que não planeamos revelar), digamos que o quarteto de visitantes não só não tem boas intenções, como se pauta por um detalhe que nada tem de secundário: são “duplos” exatos dos protagonistas. Daí a inquietante explicitação que, de alguma maneira, está condensada no título: “Eles somos nós”.


A partir daí, vamos sendo envolvidos numa teia dramática meticulosamente pensada que tem tanto de vertigem psicológica como de exuberante teatralidade. Afinal, trata-se do termo mais adequado para nos auxiliar a definir o crescendo emocional do filme, em particular, quando centrado na personagem da mãe, belissimamente interpretada por Lupita Nyong'o, reencontrado constante e incessantemente memórias mais ou menos enigmáticas da sua própria infância, que parecem tê-la condenado a enfrentar os múltiplos obstáculos que a narrativa se encarrega de inventar. “Obstáculos” esses, que integram uma série de peripécias que vão adensar e, por fim, explicar os segredos que o fantasmático jogo de duplos oculta, para tal, recorrendo sempre a um trabalho de mise en scène que privilegia uma metódica intensificação de componentes de exuberante artifício, comprovando Peele como um dos mais justos herdeiros de uma tradição que implica uma encenação quase festiva dos nossos medos mais viscerais.

Resta, portanto, convidar o leitor a participar neste delirante jogo, onde não existem respostas fáceis e tudo pode depender da leitura que cada um faça daquilo que lhe é mostrado. Seguindo essa linha de pensamento, e tendo em mente que continua a ser admirável a relutância de Peele em reduzir os seus filmes às mais banais e mecânicas convenções do género (mesmo nunca perdendo uma oportunidade de o homenagear), importa mesmo exaltá-lo como um dos poucos cineastas americanos no ativo que continua interessado em reavaliar tanto as nossas crenças, como a vulnerabilidade das relações que mantemos. Uma coisa é certa, até quando filma a apatia do homem perante o sofrimento dos seus pares (um dos temas fortes de “Nós”), Peele nunca se esquece de que somos humanos, porventura, demasiado humanos.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Us"
Realização: Jordan Peele
Argumento: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong'o, Winston Duke, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Cali Sheldon, Noelle Sheldon, Yahya Abdul-Mateen II, Anna Diop
Duração: 116 minutos
País: EUA

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