Avançar para o conteúdo principal
"Era uma Vez... em Hollywood" ("Once Upon a Time... in Hollywood"), de Quentin Tarantino


Vivemos em tempos pretensamente revivalistas. Porquê? Pois bem, porque quase semanalmente somos convidados a assistir a “novos” objetos de cinema (e de televisão), que se limitam mesmo a reciclar personagens e situações, narrativas e marcas estéticas. Para quê? Para preencher um anseio no coração dos membros do público. Um desejo quase incomportável de regressar a um local onde outrora foram felizes. O resultado dessas práticas são horrores como o remake que Jon Favreau fez de “O Rei Leão” ou a abominação que é “Stranger Things”, cujos criadores parecem encarar o cinema dos anos 80 única e exclusivamente como uma fábrica de momentos bem filmados e diálogos que provavelmente embelezariam uma boa t-shirt. Acontece que, o problema dessas produções reside mesmo na mente dos seus autores. Ou seja, todos sabemos que é fisicamente impossível voltar ao passado, no entanto, o cinema enquanto arte pode tudo, incluindo providenciar-nos prazeres que o mundo não consegue oferecer.

Felizmente, ainda existe quem compreenda isso e Quentin Tarantino é um desses últimos moicanos, que reconhecem na sua arte, antes de mais, um meio de concretizar vontades e impulsos impossíveis. Em “Era uma Vez… em Hollywood” tudo se baseia num complexo artifício, cujo título parece convocar diretamente. Isto é, tudo aquilo que acontece vai sendo mostrado ao espetador sob a lente da fábula, entendida como um processo regressivo que nos conduz a um tempo simbólico em que a mente humana coexiste perversamente com os seus muitos fantasmas. Neste caso, acompanhamo-lo numa viagem até à reta final da década de 60, marcada, em particular, pela ascensão do culto de Charles Manson (1934-2017) e o assassinato brutal da atriz Sharon Tate (1943-1969), então casada com Roman Polanski. Contudo, essas componentes históricas não são a parte central deste olhar sobre uma Hollywood a viver um tempo de acelerada decomposição das matrizes tradicionais de produção, a par do crescente e, em muitos aspetos, amedrontador poder concorrencial da televisão.


Nessa perspetiva, é importante mencionar a meticulosidade obsessiva com que Quentin Tarantino e a sua equipa transformaram a Los Angeles contemporânea numa recriação exata dessas paisagens passadas. Contribuindo assim, para um filme que cruza uma dimensão realista muito concreta com um ambiente de algum onirismo melancólico, dando origem a uma película genuinamente cinéfila, que celebra o tempo, os locais e os atores, atrizes e cineastas que marcaram a infância de Tarantino e, consequentemente, o resto da sua vida. Faz sentido, portanto, que tudo gire em torno de um duo que personifica um tempo em que o sonho de Hollywood e a sua dimensão de fábula eram colocados em causa. São eles, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), um ator enredado nas rotinas dos westerns televisivos, e Cliff Booth (Brad Pitt), o seu fiel companheiro e duplo de longa data, ou como o filme o descreve “um pouco mais que um irmão e ligeiramente menos que uma esposa”.

Os dois encontram-se num período conturbado que os leva a experienciar a decomposição da utopia que outrora pertenceu a Rick, agora ameaçado com uma de duas alternativas: sair do país para fazer westerns em Itália com autores como Sergio Corbucci (1927-1990) ou permanecer e tentar arranjar uma oportunidade sedutora na temporada de pilotos que se avizinha nas cadeias de televisão americanas. Por outro lado, a sua vizinha Sharon Tate (Margot Robbie) acaba de se casar com Roman Polanski, um dos mais populares realizadores do momento, e tem uma comédia policial com Dean Martin a chegar às salas (“The Wrecking Crew”, de Phil Karlson). Dito de outro modo, Tate está prestes a tocar o pico que Rick chegou a possuir.



Tarantino encena tudo isto como uma comédia dramática que oscila entre personagens e cenários, através dos quais vamos conhecendo e partilhando tempo com os protagonistas e as muitas personalidades com quem entram em contacto, no que pode ser descrito como uma variação sua dos clássicos hangout movies de Richard Linklater (pensemos em "Juventude Inconsciente" ou "Todos Querem o Mesmo"), aqui em vez de seguirmos uma história, fazemos companhia às almas que a habitam. Nesse sentido, é necessário mencionar duas das melhores qualidades do autor. Nomeadamente, o seu amor pelo labor dos atores e às suas capacidades enquanto escritor, conseguindo diálogos sucessivamente belos, a operar num registo entre uma comicidade afinadíssima e as componentes mais trágicas do melodrama.

E depois há os fantasmas. O da violência que Manson (visto apenas durante uma cena) e os seus seguidores estão prestes a desencadear, o de uma indústria a caminho do final, que já conseguia sentir os paços da Nova Hollywood a chegar, o de Sharon Tate, atriz de muitíssimo talento, cuja imagem ficou eternamente conectada à maneira sanguinolenta como foi assassinada, e até os das consequências do colapso dessa suposta idade de ouro, perfeitamente retratado na sequência em que Booth visita o rancho de Manson, situado num espaço que chegou a ser um exuberante estúdio de filmagens. É um filme divertidíssimo, a espaços mesmo hilariante, no entanto, as gargalhadas existem somente para disfarçar a melancolia que tudo consome. Seja como for, nesses dias, semanas, meses e anos, Tarantino foi feliz e durante uns demasiado curtos 141 minutos de “Era uma Vez… em Hollywood” consegue reviver essa alegria, e felizmente decidiu deixar-nos ir com ele, numa celebração verdadeiramente indescritível dos prazeres da fábula enquanto ferramenta que possibilita tudo, até voltar a um lugar mitológico que nunca mudará, mesmo que já consigamos sentir esses ventos a caminho…

Texto de Miguel Anjos

Realização: Quentin Tarantino
Argumento: Quentin Tarantino
Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Julia Butters, Austin Butler, Dakota Fanning, Bruce Dern, Damian Lewis, Luke Perry, Al Pacino, Damon Herriman, Lena Dunham, Maya Hawke, Harley Quinn Smith, Scoot McNairy, Kurt Russell
Duração: 141 minutos
Género: Drama
País: EUA
Distribuição: Big Picture Films

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...