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"Síndrome de Estocolmo", de Robert Budreau


O canadiano Robert Budreau parece interessado em confrontar-se com experiências complexas. Como assim? Pois bem, a sua primeira longa-metragem, "Born to be Blue" (2016), propunha-se a retratar as tentativas de Chet Baker (1929-1988) de regressar aos palcos, depois de um “romance violento” com a heroína que o colocou em situações decadentes, para tal, apostando num registo de absoluto intimismo, tal era a maneira obsessiva como a câmara se recusava a largar o rosto do músico. Três anos depois, e o pendor redentor desse filme é trocado por um sentido de humor deveras peculiar e uma certa paixão pelas mecânicas mais clássicas do thriller, num olhar acerca do caso verídico de um absurdo assalto a um banco sueco, que deu origem ao termo “Síndrome de Estocolmo”, segundo o qual o dramatismo de uma situação de rapto é tamanho, que o refém poderá mesmo começar a desenvolver laços emocionais com o seu captor.



Escusado será dizer, que essa inusitada relação não é propriamente simples de encenar e Budreau não só entende isso, como evidencia suficiente inteligência para não procurar uma maneira de explicar lógica ou cientificamente essa atração. Ao invés, Budreau evita qualquer efeito de “tese” ao escolher encenar um estranho labirinto de muitas emoções humanas, que tem início no momento em que um criminoso apaixonado pela iconografia americana (os cowboys, Steve McQueen, a música de Bob Dylan, entre outros sempre curiosos elementos), entra num banco de Estocolmo, dispara vários tiros para o ar e faz reféns das empregadas daquele estabelecimento. O restante filme é, portanto, um delicado exercício de equilíbrio entre a comédia e o drama, a violência e a gentileza, o amor e o ódio.



Budreau encena esse jogo com um notável savoir faire, sustendo um nível de suspense admirável e trazendo à tona o melhor dos seus atores, em particular, Ethan Hawke, com quem aliás já tinha trabalho em “Born to be Blue”, e Noomi Rapace, sendo especialmente necessário mencionar a subtileza e paciência com que ambos vão trabalhando a cumplicidade que lentamente se vai desenvolvendo entre as suas personagens. É mais uma vitória para um cineasta que consolida um caminho que começou na produção, e consegue aqui provar uma versatilidade incomum, conjugando géneros, valorizando a importância dos seus interpretes e assinando uma fita que tem tanto de conto emocional como de crónica desencantada acerca de uma comunicação social sensacionalista que vampirizou o caso como poucas vezes havia acontecido até então.


Texto de Miguel Anjos

Realização: Robert Budreau
Argumento: Robert Budreau
Elenco: Ethan Hawke, Noomi Rapace, Mark Strong
Duração: 92 minutos
Género: Thriller, Comédia
País: Canadá, EUA
Distribuição: Films4You

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