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"The Kitchen: Rainhas do Crime", de Andrea Berloff


Habituámo-nos a encarar o cinema de mafiosos como um terreno exclusivamente masculino. Afinal, apesar de existiram algumas tentativas pontuais de explorar esse submundo de um ponto de vista feminino, nunca ninguém tinha tentado conceber um melodrama de recorte clássico acerca do mesmo protagonizado exclusivamente por mulheres, antes da primeira longa-metragem de Andrea Berloff, argumentista de títulos bem recomendáveis como “Straight Outta Compton” (2015) ou “Blood Father: O Protetor” (2016). Desta forma, torna-se impossível não olhar um filme como “The Kitchen: Rainhas do Crime” como uma espécie de resposta a insistência da produção americana em investir em heróis e anti-heróis masculinos, especialmente, depois de movimentos como o #MeToo ou #OscarsSoWhite levaram a indústria a questionar se as obras dela saem refletem ou não a sociedade que as consome, no entanto, fazê-lo seria colocar de lado as ideias mais interessantes de um filme que se propõe a abordar um dos mais antigos subgéneros em existência por uma outra lente.



Em causa, está a história de um trio de mulheres composto por Claire (Elisabeth Moss), Ruby (Tiffany Haddish) e Kathy (Melissa McCarthy), que sempre habitaram num perverso regime de subserviência para com os homens nas suas vidas, incluindo os maridos que dominam Hell's Kitchen com um punho de ferro, juntamente com os restantes comparsas da máfia irlandesa. Acontece que, os mesmos são aprisionados na sequência de um assalto a uma loja de conveniência, deixando um quarto elemento aos comandos da cidade, que pouco ou nenhum interesse tem na subsistência financeira das esposas dos agora reclusos. Sem nenhuma outra saída possível, as mesmas são forçadas a adotar os mesmos caminhos de violência e imoralidade que os homens com quem coabitam, de maneira a conseguirem sustentar as suas famílias e escapar à condição de vítimas que as persegue incessantemente.



Assim, Berloff acaba por fazer um filme que tem tanto de crónica social realista e desencantada como de aventura mitológica. Como assim? Pois bem, se por um lado pudemos ver o seu filme como uma radiografia de problemas que estão longe de se encerrar no território norte-americano (a misoginia, o racismo, a violência doméstica, apenas para mencionar alguns), por outro podemos também vê-lo como um conto metafórico de mulheres enraivecidas por anos de maus tratos que partem numa odisseia de vingança contra o patriarcado. Essa qualidade dupla não lhe serve para desculpar um final apressado e rebuscado, mas juntamente com as interpretações soberbas de um longuíssimo elenco (Elisabeth Moss e Domhnall Gleeson, sendo os que mais atenção merecem) de atores de primeira água, fazem de "The Kitchen: Rainhas do Crime" um dos títulos mais curiosos de um verão parco em grandes filmes.

Texto de Miguel Anjos

Realização: Andrea Berloff
Argumento: Andrea Berloff
Elenco: Elisabeth Moss, Melissa McCarthy, Tiffany Haddish, James Badge Dale, Common, Margo Martindale, Brian d'Arcy James, Domhnall Gleeson
Duração: 112 minutos
Género: Thriller
País: EUA
Distribuição: NOS Audiovisuais

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