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"Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles


O cinema brasileiro como o conhecemos encontra-se às portas da morte. Afinal, parece mesmo que todas as semanas recebemos novas informações acerca das formas tacanhas e cobardes que o Governo escolheu utilizar para silenciar os seus autores. Acontece que, os mesmos se recusam a desaparecer silenciosamente, de modo a permitir a pequenos fascistas que vivam sem terem de enfrentar vozes dissonantes. Exemplos modelares disso mesmo são as novas longas-metragens de realizadores como Gabriel Mascáro (Divino Amor) ou Wagner Moura (Marighella). No entanto, mesmo num contexto de um ano tão rico em cinema corrosivo e desafiante, parece-nos mais ou menos inevitável reconhecer que o representante máximo desse “movimento” (chamemos-lhe assim) contestatório será o Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, um western nordestino (Glauber Rocha ficaria orgulhoso), que cruza géneros (o realismo coabita com componentes de fantasia e terror, contudo, sempre nos moldes de um conto alegórico que é contaminado por uma veia satírica deveras combativa) e referências (Sam Peckimpah, John Carpenter, Eli Roth, entre outros), para conceber uma experiência hipnótica que nos leva até um local metafórico e concreto, que nunca antes visitámos. Resumindo de maneira necessariamente simplificada, não conhecemos nenhum filme sequer similar a Bacurau e, na volta, não voltamos a encontrar nenhum outro espécime como ele…

Bacurau é o nome de uma pequena cidade de Pernambuco, que partilha o seu nome com um pássaro noturno que se alimenta de insetos. Uma versão utópica de uma sociedade pós-patriarcal, cuja comunidade se encontra em luto devido ao recente falecimento de Carmelita (Lia de Itamaracá), a sua matriarca. Todos se conhecem em Bacurau e ninguém parece guardar ressentimentos em relação aos seus vizinhos, à exceção das pontuais explosões de raiva da Dra. Domingas (Sonia Braga), contudo, a localidade enfrenta algumas dificuldades no que diz respeito ao financiamento de certas instituições (a escola, por exemplo), a cobertura de rede móvel (como em qualquer filme de terror, situado no meio de nenhures, não é fácil fazer telefonemas) e à escassez de água. É, nesse contexto, que Teresa (Bárbara Colen) volta a casa, para se despedir da líder que ela conhecia somente como avó. Mas, a Bacurau que abandonou não é a mesma que encontra. Agora, há um político corrupto que não quer saber dos locais para nada, mas tende sempre a aparecer por altura das eleições, com uma carrinha cheia de mantimentos e medicamentos fora de prazo (só importa mantê-los vivos tempo suficiente para conseguirem votar), uma carrinha e um slogan hilariantemente desadequado, que apenas ilustra a distância entre ele e a população: “Já está bom? Vai ficar melhor!”. Para piorar a situação, a cidade desaparece do mapa de um dia para o outro e uma equipa de assassinos contratados, provenientes dos EUA, chegam a Bacurau.



A primeira parte do filme funciona, portanto, como um retrato meticuloso do quotidiano de Bacurau, que nos introduz a uma extensa galeria de personagens, que tanto existem como símbolos (de certa forma, correspondem à definição de “personagens tipo”) e indivíduos singulares, desenhados com especificidade suficiente para escapar à simplicidade rudimentar da caricatura, mas sem padrões comportamentais que impeçam o público de projetar neles os seus pensamentos. Durante esse período, Mendonça Filho e Dornelles vão adotar um olhar quase documental para ilustrar a divisão local do trabalho social em Bacurau, no processo, remetendo para a realidade de muitas comunidades contemporâ neas, que se evidenciam em meios urbanos e rurais no Brasil e não só. Isto é, é fácil e possivelmente até aconselhável encarar esta povoação como a miniatura de uma qualquer favela. Tal ideia é visível não só na dualidade entre o labor dos líderes comunitários que lutam pela educação, saúde e pacificação, ao mesmo tempo, que mantêm acordos “tácitos” com os indivíduos que controlam o território por via da força, como também pela aura de devoção que essas figuras tendem a suscitar nalguns dos habitantes (um exemplo disso mesmo é o amor que os locais têm pelo fora-da-lei Lunga). O que nos leva a dois temas absolutamente centrais do filme, que ganham proeminência no segundo ato, após o embate com os americanos (representantes de uma cultura capitalista fria e impessoal): a resistência.

Afinal, como pode uma comunidade que procura cultivar as sementes de um futuro pacifico reagir a uma ameaça de aniquilação física? Bom, ao colocarem as suas personagens a defender o seu território, talvez, possamos argumentar que Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles querem passar uma mensagem de desencanto, “desenhando” o mundo como um jogo viciado, que condena aqueles que não correspondem à imagem arquetípica do cidadão modelo à marginalização. Aliás, num dos momentos mais impressionantes do filme, um idoso olha uma jovem nos olhos e pergunta-lhe, sem sombra de ironia ou malícia, se a mesma quer viver ou morrer. Noutro filme seria ameaça, aqui é uma questão sincera, porque numa realidade de tal forma distópica, pode muito bem ser mais fácil e menos custoso morrer do que continuar a batalhar para viver. Contudo, ainda que exista muito negrume por estas paragens (e há tanto…), Bacurau não é um lamento pelo estado das coisas, é isso sim um grito de revolta, uma obra-prima que sabe que a arte também é uma arma. Assim, Mendonça Filho e Dornelles constroem um meticuloso épico que vem empoderar as comunidades que são continuamente marginalizadas, porém nunca o fazem de modo preguiçoso, maniqueísta ou sentimentalista, pelo contrário, Bacurau tem a energia demente daquele cinema exploitation que nem sempre recebe muito respeito. Mas, Mendonça Filho é um fã confesso de cinema de género e não tem medo de recorrer às ferramentas que o mesmo lhe providencia, para criar este universo cinematográfico.



Aliás, se quiséssemos arranjar uma comparação para Bacurau, teria forçosamente de ser com o período em que Jean-Luc Godard pegou em múltiplos géneros e os desconstruía intelectualmente, desenhando intrincadas parábolas políticas e filosóficas. Ora, também aqui estamos num território experimental, onde lidera a fusão. É que Bacurau tem tant o de análise sociopolítica, a pedir longas (possivelmente intermináveis) discussões, como de série B brincalhona e rebelde, onde nem faltam nudistas armados com espingardas e crânios que se desintegram. É entretenimento de primeiríssima água, encenado com um savoir faire invejável, que nos deixa permanente colados ao ecrã, boquiabertos peran te cada uma das reviravoltas alucinadas de um guião que não cessa de surpreender. Trata-se mesmo de um jogo de justaposições aparentemente paradoxais entre a visibilidade que as personagens querem ter e a invisibilidade que lhes é imposta (também aí é importante o pássaro homónimo, que encontra nessa capacidade de invisibilidade a sua arma mais importante, para resistir aos predadores que o perseguem), a tecnologia que devia auxilia-los a aproximarem-se do mundo ao redor, mas que acaba por ser utilizada pelos seus inimigos de maneira a isolá-los ainda mais, a escola (cujo nome é João Carpinteiro, numa homenagem babada a John Carpenter) que devia ser um local de segurança, onde os jovens poderiam crescer intelectualmente, que ali está a ruir devido aos políticos que não querem um povo inteligente…

Tudo isto embalado numa erudição sedutora (Mendonça Filho e Dornelles pejaram o todo de referências à cultura brasileira, da música à literatura) e num tom anárquico intoxi cante, ao qual o elenco se compromete a 100% (Sonia Braga é um pequeno tesouro e Silvero Pereira cria um anti-herói instantaneamente icónico), que tornam Bacurau não só num dos melhores filmes de 2019, mas num dos que mais diretamente falam connosco acerca de um panorama social de muitas e delicadas convulsões. Do populismo à extrem a-direita, passando pelos movimentos #BlackLivesMatter e #MeToo, cabe tudo dentro deste “bisonte”, que nada teme, não fosse ele um dos acontecimentos mais amplamente discutidos de um ano que não foi parco em grande cinema. Também, por isso, é pena que apenas se estreie numa única sala de cinema (o Trindade, no Porto, que contratualizou duas semanas de exibição nas suas instalações), sem distribuição oficial (a Midas que comprou o Aquarius de Mendonça Filho bem podia olhar para aqui), depois de ter constituido o ponto alto de dois festivais portugueses (o Curtas Vila do Conde e o MOTELX, onde a procura era tanta que o Festival acabou por começar mais cedo, devido a uma sessão extra), quando um acontecimento desta magnitude devia ocupar um bom número de ecrãs por todo o país. Enfim, simplifiquemos, vivemos em tempos conturbados de inúmera s divisões e clivagens e precisamos de arte portentosa que nos ajude a refletir sobre elas e dê voz a quem não a tem, nesse sentido, Bacurau não é só o filme que merecemos é também o filme que necessitamos. E você? “Quer Viver ou Morrer”?


Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Bacurau”
Realização: Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho
Argumento: Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho
Elenco: Bárbara Colen, Thomás Aquino, Silvero Pereira, Karine Teles, Sonia Braga, Udo Kier

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