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"Violeta", de Kantemir Balagov


Caso nos pedissem para enumerar cineastas russos contemporâneos, é bem possível que não conseguíssemos aguentar muito tempo. Afinal, todos conhecemos Andrey Zvyagintsev, Timur Bekmambetov, Aleksandr Sokurov ou Andrei Konchalovsky, mas… e os outros? Os filmes de Andrei Tarkovski e Sergei Eisenstein continuam a circular livremente (a Leopardo Filmes dedicou mesmo uma retrospetiva ao primeiro há relativamente pouco tempo), no entanto, fora lançamentos pontuais de filmes de realizadores que nunca reencontramos no circuito comercial de salas, pouco ou nada sabemos sobre a produção russa contemporânea. Serve isto para dizer que nenhum espetador que tenha como base única e exclusivamente as longas-metragens que os distribuidores portugueses lhe providenciam não pode dizer que conhece bem essa cinematografia, pelo que, qualquer tentativa de encontrar padrões estéticos, narrativos ou temáticos é apenas e só um exercício especulativo.

No entanto, o facto de depararmos com uma experiência tão inusitada como Violeta no mesmo ano em que Vem e Vê se estreou em Portugal (demorou 34 anos, mas aconteceu), parece-nos uma coincidência tão feliz que é imperativo mencioná-la. Porquê? Pois bem, porque ambos ilustram olhares contundentes e perturbadores sobre os custos humanos da Segunda Guerra Mundial. Em Vem e Vê, os horrores desse contexto são filtrados pela mente inocente de uma criança que rapidamente vai ser destruída pela desconcertante realidade da sua condição. Em Violeta, somos convidados a ocupar o espaço de duas mulheres, que tentam reconstruir as suas vidas num ambiente que aparenta ser apocalíptico (estamos a ver imagens de um passado distante, mas poderiam pertencer aos cenários desencantados de uma qualquer Resident Evil). O que imediatamente sugere uma subtil variação sobre o estilo de títulos bélicos que nos habituámos a ver: a perspetiva feminina, num universo que tem sido dominado por histórias sobre homens.


A personagem que dá título ao filme é Iya (interpretada pela estreante Viktoria Miroshnichenko), uma enfermeira num hospital que trata os soldados feridos na guerra. Estamos em Leningrado, 1945, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, e ela é apenas um dos inúmeros seres com marcas traumáticas do conflito armado, a ponto de ser conduzida a um estado catatónico, com a respiração entrecortada e o olhar fixo, de forma mais ou menos frequente. Como se a vida se suspendesse por breves segundos, antes de tudo regressar ao “normal”. Iya não é exatamente uma pessoa sociável e poucos são os que conseguem aproximar-se dela, contudo, trata os seus pacientes com uma bondade e paciência que faz com que os mesmos e os profissionais que com ela trabalham, sintam uma enorme simpatia por ela. Mas, essa rotina será drasticamente alterada pelo aparecimento da sua melhor amiga Masha (Vasilisa Perelygina), saída da frente de batalha, com o objetivo de encontrar uma manifestação de amor no meio dos escombros deixados por uma Guerra que não poupou nada, nem ninguém.

A câmara acompanha as deambulações das duas (a quem, a certo ponto, se juntarão dois homens, por um breve período de tempo), como quem tenta documentar o quotidiano de um qualquer animal selvagem, na esperança de entender os seus pensamentos por via da observação, fazendo de Violeta uma espécie de investigação às recônditas profundezas do ser, onde parece existir apenas uma extensão da dor evidenciada pelo exterior. Isto, embrulhado num meticuloso trabalho de realização, sempre atento aos mais ínfimos detalhes que caracterizam aqueles espaços, aquelas pessoas. Assim, a componente estética do filme vai assumindo uma importância fundamental, auxiliando Bagalov a transmitir as sensações que as suas personagens experienciam, afinal, ele é mesmo um autor que entende a vitalidade da estética (e, particularmente, a textura) como um valor expressivo.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Dylda”
Realização: Kantemir Balagov
Argumento: Kantemir Balagov, Aleksandr Terekhov
Elenco: Viktoria Miroshnichenko, Vasilisa Perelygina, Andrey Bykov

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