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"O Adeus à Noite", de André Techiné


O que aconteceu a André Techiné? À semelhança dos demais humanos, também o autor de títulos como Os Juncos Silvestres ou O Local do Crime envelheceu, contudo, os seus filmes continuam a evidenciar um vigor francamente incomum. No entanto, por razões que a razão certamente não entenderá, o mercado português deixou de o acompanhar, privando os espetadores nacionais de conhecerem todos os capítulos de uma das mais importantes filmografias contemporâneas. Felizmente, o desaparecimento não é absoluto e, de vez em quando, lá temos o prazer de o reencontrar. É isso mesmo que acontece com o lançamento de O Adeus à Noite, onde o vemos a convocar um tema algo esquecido num panorama noticioso focado quase exclusivamente na atual pandemia: o jihadismo e os seus “mecanismos de purificação”.

Como é habitual com Techiné, encontramo-nos num sudoeste francês em que se sente a respiração de uma juventude à deriva, desta vez, encarnada por duas figuras “insólitas”. Alex (Kacey Mottet Klein) e Lila (Oulaya Amamra), dois amigos de infância que se converteram num casal, unidos por um ideal desconcertante. É que, ambos escolheram dedicar a sua existência à chamada Guerra Santa, delineando um plano para abandonar França e rumar à Síria, onde ele combaterá os infiéis. O filme começa quando essas personagens já preparam a viagem a ter lugar no arranque da primavera. Porém, não é o ponto de vista deles que vamos adotar, mas sim o da avó de Alex, Muriel (Catherine Deneuve) que, por diversos motivos, cedo assumiu uma componente materna na sua relação com o rapaz.


E, é mesmo caso para dizer que Techiné precisava de uma atriz com o talento de Deneuve, não fosse O Adeus à Noite um olhar sobre o confronto entre uma França envelhecida, que chegou a acreditar que o sonho utópico do maio de 68 se podia vir a tornar-se numa realidade, e as novas gerações, cuja dificuldade em encontrar um lugar numa sociedade que não tem paciência, nem interesse nos seus problemas, os torna suscetíveis a certos discursos extremistas. Ora, nada disto é novo no cinema de um autor que nunca ocultou o seu interesse pelos sinais de transformação da sociedade gaulesa, utilizando quase sempre as diferenças e conflitos geracionais para refletir convulsões políticas. Tal acontece novamente neste filme comovente e insistentemente adulto, que vai sendo carregado aos ombros pelas interpretações de um elenco de exceção.

Texto de Miguel Anjos

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