Avançar para o conteúdo principal

"Golpe de Sol", de Vicente Alves do Ó


Alternando entre melodramas de recorte clássico e comédias populares, Vicente Alves do Ó continua a construir um percurso deveras singular no contexto do cinema português. Em Golpe de Sol, encontramo-lo aos comandos de uma história que obviamente lhe é muito pessoal e o resultado é, porventura, o seu filme mais impressionante. Tudo acontece numa vivenda algures no Alentejo, onde um quarteto de amigos se reuniu para passar um fim-de-semana relaxado. No entanto, quando David, um velho amigo em comum que deixou marcas e traumas nas vidas de todos eles, anuncia o seu desejo de os visitar após um longo período de ausência do país, instala-se um ambiente caustico naquele refugio florestal, onde se começam a evidenciar feridas profundas que o tempo se tinha encarregado de recalcar. Golpe de Sol torna-se, portanto, numa espécie de variação melancólica, parcimoniosa e eloquente sobre À Espera de Godot, utilizando a inevitabilidade da visita de David para convencer as pessoas a abandonarem lentamente as máscaras que usam para ocultar o seu sofrimento interior. Nesta perspetiva, a obra possui os contornos de um thriller psicológico, na medida em que substitui uma atmosfera sensual e descontraída por um clima de tensão e dúvida que se manifesta através de insinuações nervosas, sussurros, intrigas, violência física e, mais tarde, a urgência da reconciliação. Belissimamente fotografado e abrilhantado por quatro composições de invulgares nuances emocionais, Golpe de Sol evidencia-se, acima de tudo, como um olhar desencantado sobre os mistérios da condição humana, demonstrando particular interesse por um dos mais antigos. Isto é, porque é que mentimos, por vezes, desse modo, atraindo a sua própria infelicidade?

Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

CRÍTICA - "MEMÓRIA"

Michel Franco é um cineasta empático? O termo raramente lhe foi associado, aliás, títulos como "Nova Ordem" ou "Crepúsculo" levaram muitos a acusá-lo de sadismo, apoiando-se permanentemente num niilismo incessante para encenar as mais abjetas barbaridades. Enfim, temos de assumir que quem levanta essas acusações nunca viu, por exemplo, "Chronic", o seu primeiro filme em inglês, onde não era possível fechar os olhos ao humanismo. Em "Memória", encontramo-lo na sua melhor forma, pronto para confundir os seus detratores, com um filme... "fofinho", devastador é certo, mas, "fofinho" na mesma. É o conto de Sylvia (Jessica Chastain), uma assistente social, profundamente traumatizada pelos abusos sexuais que sofreu, primeiro, às mãos do pai e depois, de um ex-namorado, e Saul (Peter Sarsgaard), cuja vida é moldada e, acima de tudo, condicionada por uma doença degenerativa debilitante. É um conceito, no mínimo, complexo, quanto mais n...