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CRÍTICA - "A BESTA"


O Dr. Nate Daniels (Idris Elba) enviuvou recentemente. A ex-mulher perdeu a batalha contra um cancro, deixando-o sozinho com as filhas, Meredith (Iyana Halley) e Norah (Leah Jeffries), que o ressentem pelo divórcio, particularmente, Meredith que o acusa de ter abandonado a progenitora na sua hora de necessidade, aproveitando todas as ocasiões que se proporcionam, para demonstrar o desdém que sente pelo pai.

Numa tentativa de reparar esses laços, Nate leva as filhas até uma reserva natural na África do Sul, onde a mãe passou muitos anos. Uma vez lá, reencontram-se com Martin (Sharlto Copley), um velho amigo da família que os recebe de braços abertos em sua casa e lhes promete uma tour pela zona.

No entanto, os planos acabaram gorados. Porquê? Pois bem, digamos apenas, que, durante um passeio pela savana, se vão cruzar com um leão esfomeado, confuso e furioso.


Essa confusão é, desde logo, fundamental, porque, ao contrário do que um título sensacionalista como "A Besta" parece sugerir, o filme do islandês Baltasar Kormákur é, acima de tudo, uma denúncia do horror da caça furtiva, que tanto tem fustigado o continente africano.

Afinal, como menciona Martin, a certo ponto, um leão não atacaria humanos assim, "A Besta" titular apenas se transformou nesta implacável máquina assassina, devido à intervenção dos caçadores furtivos, que assassinaram toda a sua matilha, colocando-o em pânico e forçando-o a fazer tudo o que pode para se defender. Porém, tratando-se de um leão, ele não possui a capacidade de distinguir quem é maligno ou benigno, a única maneira de continuar é assumir que todos podem querer transformá-lo num troféu.

Curiosamente, Kormákur e o argumentista Ryan Engle conseguem mesmo combinar essas componentes de crítica social, com uma saga familiar antiquada (no melhor sentido possível do termo) e tocante.


Elba é admirável, como sempre, incorporando todas as falhas que corroem a alma (e ameaçam as relações) de um homem fundamentalmente bom. Nunca quis, propositadamente, magoar a falecida ex-mulher ou as filhas, mas, isso acabou por acontecer naturalmente, como consequência das suas ações, potencialmente, mal pensadas.

Outra jogada de mestre do argumento é a maneira como o retrata como um homem comum, inteligente e fácil de simpatizar, mas, totalmente impreparado para lidar com situações limite (seja a forma como a morte da ex-mulher degradou a sua relação com as filhas ou o surgimento de um leão esfomeado que, na volta, até pode ser encarado como uma metáfora para os problemas familiares de Nate), aumentando a intensidade das cenas e fazendo com que seja mais fácil para o espetador colocar-se nos seus sapatos.

E se, tanto Sharlto Copley (sempre tremendo), como Iyana Halley e Leah Jeffries nunca desiludem, a segunda estrela do filme, atrás de Elba, é mesmo o próprio realizador, que além de ser capaz de criar e manter um clima de tensão permanente, ainda espanta com a sua predileção por planos longuíssimos, que enchem o olho e providenciam uma fluidez impressionante à ação. E, ainda dizem que Hollywood deixou de se interessar por pequenos filmes, capazes de utilizar (ou ostentar) uma linguagem, especificamente, cinematográfica.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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