Em 1995, os rapazes de uma aldeia nunca nomeada, algures no interior de Portugal, usando roupas velhas com guizos, sacos a fazer de capuzes e empunhando cordas e vergastas, cumprem anualmente a velha tradição de andar pelas ruas a assustar as pessoas e a perseguir as raparigas, com o pretexto de "sacudir" o Diabo dos seus corpos (supostamente, Ele "cola-se" a elas por intermédio do vento).
No entanto, no momento em que o assédio de Judite (Maria Abreu em adolescente, Isabel Abreu como adulta) ameaça tornar-se numa violação, Laureano (primeiro Benjamin Barroso, depois Albano Jerónimo) intervém. O ataque é impedido, mas, o rapaz é forçado a pagar o preço pelo seu ato de relutante heroísmo, quando os outros o espancam brutalmente.
Passados 25 anos, os agressores de Laureano levam vidas estáveis. Um deles, Samuel (Nuno Lopes), é um empresário com peso na região, separado da mulher (Maria João Pinho) e com um filho adolescente (Ivo Arroja), outro, Paulo (João Pedro Vaz), comanda o posto local da GNR e é casado com Judite (Isabel Abreu), por sua vez separada de Vítor (Gonçalo Waddington), que vai cumprir pena por causa de um negócio duvidoso em que envolveu, e do qual tem uma filha menor, Salomé (Leonor Vasconcelos).
Entretanto, Laureano sofreu sequelas graves do espancamento coletivo e é visto como o "maluco da aldeia". Vive numa casa isolada, sem confortos básicos como luz ou água, sempre rodeado de um extenso grupo de cães vadios, que parecem reconhecê-lo como o líder ou, pelo menos, enquanto membro da sua "irmandade". Todos menosprezados, humilhados e abandonados pela sociedade em redor, afinal, apenas Judite parece preocupar-se com ele, lavando-lhe a roupa e levando-lhe mantimentos regularmente.
Contudo, um ar de violência abate-se (ou vem à tona...) na aldeia, quando o filho de Samuel aparece morto...
Aproximando-se do policial na narrativa (pensemos, por exemplo, em "Uma História de Violência", de David Cronenberg, mas, subtraindo o sentido de humor) e do terror no tom (o dinamarquês "Speak No Evil", recentemente exibido no MOTELX, é uma boa comparação), "Restos do Vento" já tem vindo a ser catalogado por muita gente como um "filme de género", o que, não sendo inteiramente errado, não nos parece a melhor maneira de descrever o delicado labor de Tiago Guedes.
"Restos do Vento" é, acima de tudo, uma tragédia grega transportada para o Portugal bucólico dos nossos dias. A história introduz um mistério, cuja resolução adivinharemos muito antes das personagens, porque, à semelhança dessas dramaturgias centenárias, as revelações têm sempre sabor a inevitabilidade. Como se os atos das personagens, resultassem de uma maldição qualquer, uma condenação antiga a percorrer os mesmos caminhos dos seus antecessores e, consequentemente, repetir os erros destes.
Nesse sentido, o filme de Tiago Guedes assumir-se-á como uma fábula sobre o caracter intrínseco da violência na cultura popular (um flagelo transversal a todas as sociedades e não apenas português, como é natural). Aqui, mergulhamos num retrato profundamente desencantado dos aspetos mais perversos do nosso quotidiano, onde os mais fortes sentem a necessidade de comprovar a sua supremacia sob os mais vulneráveis e, mesmo quando alguém tenta mudar o rumo do futuro, os pecados do passado insistem em materializar-se novamente (caso do ritual de passagem que abre o filme, que continua a realizar-se secretamente, mesmo depois de ser banido), ilustrando uma sociedade que avança no tempo, mas, não evolui.
As personagens de "Restos do Vento" podem nem ter consciência dos seus atos (ou da possibilidade dos mesmos desencadearam algum tipo de consequências para eles e para os demais), porém, os comportamentos que exibem contribuem para a propagação da mesma crueldade e indiferença que confinou Laureano à marginalidade e Pedro à uma morte prematura.
Nietzsche dizia que a violência era um ciclo, que apenas um ato sacrificial podia interromper, mas, como "Restos do Vento" sublinha, um atitude conscienciosa solitária, é apenas isso, uma interrupção, quando aquilo que se pede é uma mudança de paradigma.
Embalado por uma "lentidão" vertiginosa e perturbante (o próprio Tiago Guedes tem referido uma vontade de desacelerar o tempo do cinema em entrevistas), "Restos do Vento" propõe-se, portanto, a engolir-nos da mesma maneira que a sociedade engole as suas personagens, atirando-nos para uma infindável espiral de acontecimentos trágicos, que assumem os contornos de um inusitado circo dos horrores, onde o que se encontra é em exibição são os aspetos menos positivos da condição humana, acerca dos quais urge refletir.
Nesse processo, a contribuição dos atores é fundamental e, sem querer minimizar o labor de nenhum deles, é imperativo destacar a imaculada composição de Albano Jerónimo, capaz de desconstruir todos os clichés associados ao que poderia perfeitamente ter sido uma mera "personagem tipo" (o tal "maluco da aldeia"), eliminado a comicidade que muitas formas de dramaturgia lhe associaram (da revista às telenovelas), de modo a expor o sofrimento daquela alma dilacerada que, no limite, representa todos os que foram esquecidos e rebaixados por um mundo frio e indiferente.
Um colosso tremendo!
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Texto de Miguel Anjos
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