Numa das imagens mais reconhecíveis de "Lobo e Cão" (contemple-a acima), um grupo de outsiders, incluindo os protagonistas, Ana (Ana Cabral) e Luis (Ruben Pimenta), posicionam-se um a um, num palco, olhando diretamente para a câmara e, consequentemente, para nós. Nunca nos dirigem a palavra (não podemos, portanto, falar numa "quebra da quarta parede"), mas, temos consciência de que se os seus olhares "procuram" o nosso. Esse longo plano, "embalado" pela área "Cold Song", na voz de Klaus Nomi, um ícone esquecido da comunidade LGBTQI+, encapsula quase tudo aquilo que é a primeira longa-metragem de ficção de Cláudia Varejão, autora de "Ama-San" e "Amor Fati". Um mergulho profundo na comunidade queer de São Miguel, nos Açores, filtrado pelo olhar, inerentemente, melancólico, incerto e receoso de dois jovens que, entre a infância e a idade adulta, naquele instante fugaz que apelidamos de "adolescência", que expõe a diversidade, aparentemente, escondida, por vezes, sufocada, numa comunidade insular que é tudo menos um monólito de estereótipos tradicionalistas e redutores.
É um momento de insólita beleza, que cristaliza a empatia com que Cláudia Varejão encena esta pequena epopeia, onde, apetece dizer que, paradoxalmente, não acontece nada e acontece tudo.
Ana e Luís nasceram em São Miguel e, tudo indica, que nunca de lá saíram. Ela não sabe como expressar os seus desejos, maioritariamente, por medo (de reprovação, de marginalização, quiçá, de violência), até porque, toda a gente em seu torno lhe incutiu a ideia de que as raparigas têm tarefas (e deveres) distintos dos rapazes. Ele, é muito mais expansivo, exuberante e, aqui e ali, mesmo capaz de responder a provocações, no entanto, leva uma vida marcada pela ausência de aceitação por parte do pai, que o encara sempre com um misto de repulsa e incompreensão, e de opções que lhe permite escapar à pobreza que sempre assombrou os pais.
Durante o verão, Ana recebe uma visita da amiga Chloé (Cristiana Branquinho), a viver no Canadá com a mãe emigrante, enquanto Luís parte numa romaria, com outros homens da região, incluindo o pai...
Entretanto, nós observamo-los, à medida que se escondem e revelam como conseguem, como podem, ao mesmo tempo, que vamos conhecendo mais detalhes acerca das pessoas que os rodeiam (se é certo que "Lobo e Cão" é um belíssimo filme sobre o fim da adolescência, não é menos verdade que é um retrato incisivo da natureza, por vezes, claustrofóbica da maternidade e, em particular, da forma como muitas mulheres são condicionadas a aceitá-la como a sua única função), sempre por intermédio de um trabalho de realização, tremendamente, sensível e empático, que nos convida a entrar num quotidiano cheio de especificidades e a encontrar nele algo nosso. Afinal, como sempre acontece nos melhores filmes, quanto mais concreto e detalhado é aquilo que vemos, mais facilmente conseguimos colocar-nos nos pés das personagens, sentir o que sentem e descobrir que, na volta, não são assim tão diferentes de nós.
É um feito de mise en scène, sem dúvida, no entanto, enquanto objeto coral, onde todas as vozes, rostos e olhares, nos transmitem algo de muito substancial (e, este é mesmo um filme de admirável subtileza, onde importa prestar atenção a todas as interações, comentários e gestos, aparentemente, inconsequentes), "Lobo e Cão" vive e respira da alquimia entre Cláudia Varejão e os seus atores, não-profissionais é certo, mas, de uma naturalidade, energia e eletricidade que nos arrebata de imediato. Num ano de boa colheita para o cinema português (só nos últimos meses houve "Restos do Vento", "Fogo-Fátuo" ou "Alma Viva"), "Lobo e Cão" é mais uma bela adição a esse ilustre cânone, uma odisseia de afetos que nos (aperta e) aquece o coração.
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