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CRÍTICA - "OS ANOS SUPER 8"


Na primeira semana de 2022, a NOS Audiovisuais estreou "O Acontecimento", baseado no romance homónimo de Annie Ernaux. No entanto, os constrangimentos da pandemia condenaram-no a uma passagem demasiado discreta pelas salas escuras. Entretanto, Ernaux recebeu o Nobel da Literatura, providenciando um outro nível de visibilidade que, não tendo chegado a tempo de auxiliar "O Acontecimento", pode muito bem ser o principal atrativo de "Os Anos Super 8", um documentário elucidativo, envolvente e, tremendamente, económico (são apenas 61 minutos de duração, portanto, se se anda a queixar das 3 horas e 12 minutos de "Avatar: O Caminho da Água" nas redes sociais, tem bom remédio), que a romancista assinou em conjunto com David Ernaux-Briot, um dos filhos.

Nele, acompanhamos um conjunto de gravações caseiras, filmadas com uma câmara Super 8, entre 1972 e 1981, no seio da família Ernaux, devidamente acompanhados pela voz da autora francesa, que evidencia um condão notável para unir o "pessoal" e o "político", demonstrado pela maneira como o seu extenso depoimento é, simultaneamente, uma retrospetiva elegíaca sobre a sua própria vida e um olhar francamente fascinante em torno das transformações sociais e políticas que se viveram naquele tempo, em última instância, reconhecendo que esses elementos não são díspares, mas sim, complementares. No fundo, todos somos produtos do tempo em que vivemos.

Trata-se de um filme, tremendamente, intimo, onde Ernaux se expõe por completo (os marido, os filhos e alguns outros familiares e amigos também aparecem nas imagens, mas, apenas ela "abre a alma", recontextualizando o que vemos por via do que ouvimos), contando-nos como se tornou na pessoa que é, num processo que envolve algo de fantasmático, pela maneira como Annie e David remexem nestes espetros de celuloide, confrontando testemunhos de uma vida em conjunto que pertence ao passado, de onde nunca sairá, mas que eles insistem em resgatar do esquecimento.

Acima de tudo, "Os Anos Super 8" é mesmo muito bonito.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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