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CRÍTICA - "O MENU"


A comédia é, inerentemente, anárquica. Enquanto ferramenta de desconstrução social e política, filosófica e moral, (das nossas certezas civilizacionais, do absurdo da nossa condição, etc.) o humor não suporta nenhum tipo de hierarquia de poder, uma vez que, a sua força reside na sua capacidade de encontrar algo de, fundamentalmente, ridículo em todos nós. O cómico é, portanto, uma figura destrutiva, incapaz de reconhecer estatutos sociais (ou desinteressado em fazê-lo), egos e outros impedimentos.


O realizador Mark Mylod e os argumentistas Seth Reiss e Will Tracy, sabem disso e comprovam-no em "O Menu", compondo uma sátira sanguinolenta e impiedosa, a meio-caminho entre "Succession" e "Saw""O Anjo Exterminador" e "Charlie e a Fábrica de Chocolate"...


Nele, rumamos até uma ilha junto à costa noroeste do Pacífico, onde o chef Julian Slowik (Ralph Fiennes) e a sua equipa residem anualmente, presenteando os visitantes com os mais excêntricos menus no seu restaurante, o Hawthorne. Apenas os mais abastados podem sequer sonhar em lá ir, dado que, cada cliente necessita de desembolsar 1200€, no entanto, isso não impede o Hawthorne de ser muito procurado pelos membros da alta sociedade norte-americana (e não só)...

No centro dos acontecimentos, encontramos Margot (Anya Taylor-Joy), cujas origens humildes lhe garantem um estatuto de outsider, entre os convidados. Na verdade, ela nem queria, necessariamente, visitar o Hawthorne, contudo, as regras draconianas de Slowik proíbem reservas individuais, levando Tyler (Nicholas Hoult), um foodie pomposo e insuportável a convidá-la (saberemos mais detalhes acerca da natureza da sua relação, à medida que o filme avança).

Os restantes clientes são uma coleção de detestáveis membros da alta sociedade, incluindo uma critica gastronómica pedante (Janet McTeer), um trio de profissionais da banca (Rob YangArturo Castro e Mark St. Cyr), que, nas horas vagas, desviam tudo o que podem para contas privadas nas Ilhas Caimão, e uma estrela de cinema decadente (John Leguizamo). Inicialmente, tudo parece normal (ou, pelo menos, normal para o contexto de um restaurante avant-guarde, frequentado apenas por indivíduos com contas bancárias exorbitantes), mas, a situação não demora a adquirir contornos insidiosos, quando os planos de Slowik para o serão começam a ficar claros...


À cabeça, Mylod tem o rasgo de génio de "povoar" o seu filme de atores em excelente forma, com, pelo menos, dois destaques óbvios, nomeadamente, um inexcedível Ralph Fiennes como o chefe com contas a ajustar com o mundo, que parece um herdeiro dos sábios loucos (e, tendencialmentesádicos) do cinema de terror britânico dos anos 1960 e 1970, e Anya Taylor-Joy, justíssima rainha do novo cinema de género norte-americano (vimo-la, por exemplo, em "A Bruxa" e "O Homem do Norte", de Robert Eggers"Fragmentado" e "Glass", de M. Night Shyamalan, ou "A Noite Passada em Soho", de Edgar Wright), a combinar aquela sua elegância característica de femme fatale, com contornos, no mínimo, inesperados (o seu total desinteresse pelo universo da haute cuisine, por exemplo), que dela fazem a ancora do filme. Seja por não ali querer estar, por não ter dinheiro suficiente no banco para sequer almejar a "dividir a conta" ou por ser a única que possui um compasso moral coerente, tornando-se, consequente e simultaneamente, na representante do público na narrativa e no "pauzinho na engrenagem" que complica os planos de maquiavélicos de Fiennes.

No entanto, o brilhantismo de "O Menu" reside, maioritariamente, no trabalho de argumento, capaz de fazer crítica social, sem cair nos facilitismos da praxe. De facto, as personagens são símbolos, uma vez que, existem como representações de determinados comportamentos ou pensamentos, mas, Seth Reiss e Will Tracy têm a inteligência de os tornar em seres humanos de carne e osso, com nuances, sentimentos contraditórios e, acima de tudo, vulnerabilidades (o duo composto por John Leguizamo e Aimee Carrero, chega a protagonizar um momento, estranhamente, comovente na reta final, quando, por uma vez, permitem que as suas máscaras sociais e emocionais caiam, revelando a natureza tóxica da sua relação).

Seguindo essa linha de pensamento, saudemos o quão implacável consegue ser "O Menu", oferecendo-nos uma sátira incisiva na hora de demonstrar o porquê do seu desencanto social. À semelhança do recente "Triângulo da Tristeza", de Ruben Östlund, e do vindouro "Última Noite" (a NOS Audiovisuais vai estreá-lo na próxima quinta-feira), de Camille Griffin, é um filme à medida dos nossos tempos, das nossas preocupações, incertezas e irritações e isso é crucial para o seu sucesso.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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