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CRÍTICA - "DANÇA PRIMEIRO. PENSA DEPOIS."


Entre 23 de novembro de 2023 e 4 de janeiro de 2024, os astros alinharam-se para que as salas de cinema nacionais recebessem três cinebiografias "de autor", que escolhem colocar, quase completamente de lado, a "obra" do biografado para se focarem na sua vida íntima, desse modo, providenciando-nos a oportunidade de conhecer alguém além do mito, da fabulação. Foram eles, "Napoleão", de Ridley Scott (Apple TV+/Sony Pictures Portugal), "Maestro", de Bradley Cooper (Netflix/NOS Audiovisuais) e "Dança Primeiro. Pensa Depois.", de James Marsh (NOS Audiovisuais).

É, precisamente, sobre o último que nos debruçamos hoje e, ainda que a falta de um produtor endinheirado o tenha condenado a uma certa obscuridade, não é que é, claramente, o mais interessante dos três títulos previamente mencionados? É verdade, James Marsh, cineasta britânico que oscila entre o documentário e a ficção, com resultados que tanto fascinam ("Homem no Arame", "Projeto Nim", "Dança de Sombras") como aborrecem ("A Teoria de Tudo", "Rei dos Ladrões"), volta à sua melhor forma, com um projeto que tem o seu quê de megalómano.

Trata-se de contar a história de Samuel Beckett (1906-1989), de acordo com a sensibilidade muito idiossincrática do dramaturgo irlandês. Assim, em vez de acompanharmos a vida de Beckett ao longo dos anos, como num biopic dito "tradicional", Marsh coloca em cena alguns episódios protagonizados por Beckett, introduzidos e contextualizados pelo próprio Beckett. Como assim? Pois bem, é que, o centro nevrálgico de "Dança Primeiro. Pensa Depois." é mesmo um diálogo entre o Beckett "real" e um duplo "subconsciente" de si mesmo.


É um empreendimento intimidante, não só porque Beckett não é uma personalidade qualquer (afinal, falamos de um dos criadores do "Teatro do Absurdo", a par de Eugene Ionesco, Jean Genet e Harold Pinter), mas também porque Marsh adota uma estrutura pouco convencional, saltitando entre o passado e o presente, a cor e o preto e branco, a realidade e a fantasia, a melancolia e a comédia, sempre com um contagiante tom lúdico, dir-se-ia, brincalhão, que advém da influência de Beckett, recorrendo à estranheza para acentuar os acontecimentos que testemunhamos, sem nunca lhes retirar nenhum tipo de seriedade ou intensidade.

E se, tanto a mise en scène de Marsh, como argumento de Neil Forsyth, são certeiros, importa mencionar a importância do elenco, encabeçado por um Gabriel Byrne imperial. Que Byrne é um ator de mão cheia, ninguém duvida, no entanto, por falta de bons papéis (ou de interesse em procurá-los), há muito não o víamos em estado de graça ("Ensurdecedor", de Joachim Trier, em 2016, foi o último grande momento da sua carreira) e, em "Dança Primeiro. Pensa Depois." apresenta uma composição de invulgares nuances emocionais que chega a impressionar. Contudo, não estamos perante um one man show e, porque não é possível mencionar toda a gente, ficam dois nomes, Finn O'Shea, como o jovem Beckett, e Aidan Gillen, na pele do seu mentor, James Joyce.

"Dança Primeiro. Pensa Depois." estreia-se hoje de Norte a Sul do país, com nenhum tipo de apoio publicitário, de certa forma, condenando-o à obscuridade. É pena. Em vida, Beckett foi dramaturgo, romancista, encenador, poeta, tradutor e membro da resistência durante a Segunda Guerra Mundial, agora, é também o centro de um belíssimo filme. Ide vê-lo, preferencialmente, depressa, porque nunca se sabe quanto tempo vai aguentar em sala...

★★★★
Texto de Miguel Anjos

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