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CRÍTICA - "DOGMAN"

"Quando o homem está com problemas, Deus envia-lhe um cão", disse-o Alphonse de Lamartine, romancista, poeta e Ex-Ministro da Europa e dos Assuntos Estrangeiros em França. É, precisamente, com esse pensamento que o seu compatriota Luc Besson escolhe abrir a sua 20ª longa-metragem, "Dogman", um conto sanguinolento sobre o poder redentor do amor canino.

Trata-se da história de Douglas (Caleb Landry Jones), sobrevivente de Mike (Clemens Schick), um pai tremendamente abusivo, que encontrava no fanatismo religioso tacanho uma justificação para a sua conduta imoral. Um dia, Mike tranca Douglas na jaula em que prende os cães, que treina para lutas de cães (diz Besson que a base para a história vem, precisamente, de um caso similar que fez escorrer muita tinta em França). Não sabemos, ao certo, quanto tempo Douglas passou ali fechado, nem precisamos, porque é óbvio que aquele trauma foi formativo, ensinando-lhe duas lições que, claramente, o acompanhariam para todo o sempre, a primeira prende-se com a natureza egoísta, a espaços, violenta dos humanos, em que nunca conseguirá confiar plenamente, a outra diz respeito ao amor incondicional dos cães, fiéis e carinhosos, que lhe serviram de âncora no seu período mais negro, providenciando-lhe as benesses que a vida lhe negou.

Besson adota uma estrutura não-linear, saltitando entre passado e presente, para ilustrar como a passagem do tempo moldou Douglas, levando-o a cultivar uma existência nas margens da sociedade que, eventualmente, o coloca no caminho de um criminoso local... À semelhança dos melhores momentos da sua filmografia ("O Último Combate", "Subway", "Le Grand Bleu", "Léon, O Profissional", "O Quinto Elemento", etc.), Besson combina géneros, influências e referências para construir uma obra inebriante, simultaneamente, comovente e empolgante, que, brilhantemente, vai analisando as várias camadas de uma personagem de tremenda complexidade, que cedo conheceu e experienciou o pior do ser humano e, ainda assim, conseguiu manter a sua dignidade.

Personagem (muito bem) entregue a Caleb Landry Jones, um dos atores mais interessantes do panorama contemporâneo, capaz de "saltitar" de país em país, género em género, mergulhando sempre no universo muito particular das suas personagens, sem medos, nem hesitações. Aqui, é absolutamente admirável vê-lo assumir as muitas nuances de Douglas, com um afinco indizível. Apetece dizer que, para "testemunhar" a sua entrega, valeria a pena pagar o preço do bilhete.

★★★★
Texto de Miguel Anjos

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