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CRÍTICA - "A SEMENTE DO MAL"

Em outubro de 2020, embrenhados (ou sufocados) em manchetes sensacionalistas sobre a COVID-19, tínhamos poucos motivos para ter esperança para o futuro, mas, depois, "Quatro Contos de Gabriel Abrantes" estreou-se no Cinema Medeia Nimas, em Lisboa (e, possivelmente, no Trindade, no Porto, a memória já não me permite assegurar). Tratava-se de uma "compilação" (uma "mixtape" se quisermos) de quatro curtas-metragens de Abrantes, incluindo "Freud Und Friends" (2015), "Uma Breve História de Princesa X" (2016), "Os Humores Artificiais" (2016) e "As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra" (2018).

Experienciá-las em sala, especialmente, para quem o associava somente ao seu único título estreado comercialmente à data, "Diamantino", foi um prazer incomensurável. Ora, durante uma entrevista destinada a promover o lançamento de "Quatro Contos", Abrantes anunciava algo que parecia bom demais para ser verdade: encontrava-se, ativamente, a trabalhar num "slasher transmontano".

Finalmente, boas notícias, para o cinema, para Portugal, para o mundo.

Passados três anos, o MOTELX permitiu aos seus hóspedes um primeiro vislumbre de "A Semente do Mal", que, internacionalmente, será conhecido pelo mais enigmático "Amelia's Children"... e o "nosso" Gabriel não desiludiu.

Como tantas vezes acontece no terror, os acontecimentos de "A Semente do Mal" giram em torno de uma regresso a casa, às origens. Em bebé, Edward (Carloto Cotta) foi adotado por um casal norte-americano, no entanto, sempre se questionou de onde veio realmente. Um dia, Riley (Brigette Lundy-Paine), a namorada, oferece-lhe um teste de ADN que lhe permite localizar a sua família biológica no interior de Portugal. À chegada, depara com Manuel (também Carloto Cotta), um irmão gémeo, meio-idiota, com ares de "agro-beto", mas, aparentemente simpático, e Amélia (Alba Baptista e Anabela Moreira) uma matriarca, no mínimo, "enigmática". Escusado será dizer, que algo de errado se passa ali...

Como acontecia em "Diamantino" (e nas suas curtas-metragens, que nos permitiram um pequeno vislumbre do autor em que Abrantes se tornaria), cabe todo o cinema em "A Semente do Mal". Quer o título nacional, quer o internacional explicitam, imediatamente, uma conexão umbilical ao "Rosemary's Baby", de Roman Polanski, entre nós, intitulado "A Semente do Diabo", mas, também reconhecemos o histrionismo sanguinolento de um Dario Argento, a beleza formal de Bergman (no final da sessão, Abrantes não se coibiu de mencionar "Lágrimas e Suspiros"), a "queda" para o camp, a meio-caminho entre John Waters e Gregg Araki, bem como omnipresença da cultura pop portuguesa (a banda-sonora é todo um programa).

Reconhece-se a vontade de deixar o espetador na dúvida, "é a sério" ou "a brincar"? É um bocadinho dos dois e ainda bem, Abrantes é um "autor", mas, claramente, não gosta de gavetas e essa aversão só lhe fica bem.

Por vezes, intenso, por vezes, hilariante, "A Semente do Mal" é estranho demais para caber na "chapa quatro" que nos habituamos a utilizar para filtrar o que vemos, lemos e escutamos. Tem demasiada personalidade, demasiada energia.

Por aqui tudo bem, um filme como este é um bálsamo para a alma. A partir de hoje, já podem descobri-lo, de Norte a Sul do país, numa sala de cinema, pois claro.

★★★★
Texto de Miguel Anjos

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