O rocambolesco voltou. O cinema nunca abandonou completamente a estranheza. No entanto, houve um período em que a normalidade aparentava ter subjugado a onda de excentricidade que autores como Michel Gondry e Charlie Kaufman capitaneavam. Felizmente, o surgimento de vozes insubmissas como Quentin Dupieux e Kristoffer Borgli tem-nos proporcionado novas oportunidades de entrar em contacto com sensibilidades pouco convencionais, desejosas de reinterpretar a realidade à luz do surrealismo.
Um dia, Paul começa, subitamente, a aparecer nos sonhos de pessoas nos quatro cantos do mundo. Inicialmente, assumindo-se como uma personagem passiva, "permitindo" que os sonhadores sejam sujeitos a múltiplas agressões, num inusitado crescendo de violência, enquanto ele se limita a caminhar em direção a eles (e, de vez em quando, a acenar). O fenómeno nunca é explicado (e ainda bem), quanto mais não seja, porque não é necessário. Paul transformou-se numa celebridade viral sem necessitar de "mexer uma palha" para atingir esse estatuto tão cobiçado. Contudo, a situação não demora a piorar quando o Paul que aparece nos sonhos passa de uma figura passiva para uma espécie de ser vilanesco, transformando este homem completamente banal e até um pouco totó num alvo para a chamada "cultura do cancelamento".
Adotando um registo que fica a meio-caminho entre a comédia burlesca e o terror, "O Homem dos Teus Sonhos" comprova a capacidade de Borgli de nos dar uma premissa suficientemente incomum para captar a atenção de imediato e, mais impressionante, de a conseguir levar a lugares inesperados. O humor é contundente e, em alguns momentos, desconfortável, expondo de forma inteligente o ridículo da cultura do cancelamento, sem recorrer a lugares-comuns. No entanto, Borgli não fica por aí, permitindo que o filme se transforme, abandonando sua pele como uma cobra, e assumindo novas formas. A reta final, já intoxicada pela gramática do cinema de terror (com Wes Craven e "Pesadelo em Elm Street" sempre à espreita), é tocada por uma melancolia que surpreende e comove, oferecendo um olhar simultaneamente indignado e passivamente cínico sobre as maneiras como o capitalismo se apropria de tudo.
Naturalmente, nada disto resultaria sem Cage, um daqueles atores que merecem ser chamados de "autores", alguém que desenha a sua própria filmografia na dos outros. Aqui, à semelhança do que acontecia em "Mandy", de Panos Cosmatos, ou "Pig", de Michael Sarnoski, citando dois dos seus títulos mais recentes, Cage embrenha-se no universo que o filme pretende criar, deixando-se moldar pelos seus ritmos e idiossincrasias. A performance de Cage, como sempre, não é apenas um ponto alto do filme, é o filme.
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