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CRÍTICA - "THE BIKERIDERS"


No panorama cinematográfico contemporâneo, Jeff Nichols é um solitário. Um cineasta proveniente do coração da América do Norte, mais precisamente de Little Rock, no Arkansas, Nichols tem-se dedicado quase exclusivamente a trazer para o grande ecrã um universo que Hollywood esqueceu completamente (ou opta por ignorar), nomeadamente, o da América onde nasceu e cresceu, interior, rural, sem nenhum glamour, refém de credos pouco recomendáveis, como o culto das armas, o fundamentalismo cristão ou a desconfiança perante o Estado central.

Resumindo, a América que ganhou uma identidade política e, consequentemente, mediática no momento em que Hillary Clinton falou dos “deploráveis”. Em “The Bikeriders”, Nichols baseou-se no livro homónimo do fotógrafo Danny Lyon, que documenta a evolução (ou perversão) de um clube de motoqueiros que, lentamente, se transformou numa organização criminosa.


O filme de Nichols é “comandado”, por assim dizer, por três personalidades, o fundador do clube, Johnny (Tom Hardy), um camionista que ali encontrou uma maneira de criar uma comunidade e, não menos importante, de se reinventar como um líder, Benny (Austin Butler), o jovem temerário, tremendamente leal aos seus companheiros de armas, ainda que, filosoficamente niilista e Kathy (Jodie Comer), mulher do segundo e narradora do filme.

O argumento tem como pedra de toque uma conversa verídica entre Lyon e Kathy, aliás, muitos dos diálogos resultam mesmo de um rigoroso processo de transcrição e mimetismo. Trata-se, à partida, de uma das mais interessantes decisões de Nichols, ao dar a palavra à única mulher com um papel minimamente relevante no filme, o realizador encontra uma maneira de nos guiar pelos códigos muito específicos daquele submundo, sem nos emergir nele. Kathy está casada com um membro dos Vandals, mas o estatuto de membro não se estende a ela, condenando-a a permanecer eternamente fora daquela comunidade e, consequentemente, de uma peça fundamental da identidade da conjugue. Dramaturgicamente falando, essa condição torna-a numa narradora ideal, permitindo-lhe a proximidade suficiente para saber o que se passa no interior daquele clube, mas não a ponto de lhe toldar o julgamento.


“The Bikeriders” vai, então, assumindo várias dimensões, sendo duas especialmente importantes. Por um lado, é um estudo sobre a natureza da masculinidade enquanto conceito, iconográfico é certo, mas não só. Raramente vemos aqueles motoqueiros em cima dos veículos de duas rodas que parecem caracterizar a sua personalidade, Nichols prefere apenas acompanhar o quotidiano daquele grupo, as festas, as piadolas, os apalpões, as cervejas que bebem e os charros que fumam, um hedonismo que representa, afinal, um conjunto de códigos simbólicos que ajudam aqueles homens encontrar uma comunidade, socorrendo-se de um sentimento de pertença que lhes permite fugir às agruras de um quotidiano muito menos entusiasmante, onde não são cowboys do asfalto, nem nada que se pareça.

Por outro, “Bikeriders” acaba por se alinhar com “O Padrinho”, de Coppola, na maneira como retrata, com um olhar quase antropológico, a corrupção daquele ambiente, à medida que as drogas e a violência começam a penetrar o ADN dos Vandals todos os aspetos da vida daquelas personagens mudam completamente, a “família” passa a “empresa”. Nesse sentido, apetece sugerir que Nichols, um classicista de gema, encontrou nas fotografias de Lyon uma maneira de encenar a mais perene narrativa do cinema dos EUA, a da decadência moral de uma família (improvisada ou não) de raízes humildes como um microcosmo da falência da identidade norte-americana que, tentada pelo dólar como Adão e Eva pela maçã, perdeu a sua inocência.

★★★★☆
Texto de Miguel Anjos

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