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CRÍTICA - "A QUIMERA"


"Então, és tu. O meu último rosto de mulher." Ouvimo-lo no princípio de "A Quimera" (ou muito semelhante, citamos de memória, mas jurando pela fidelidade ao espírito) e, não parecendo, Alice Rohrwacher, cineasta e coargumentista (com Carmela Covino e Marco Pettenello), anuncia imediatamente ao que vem com a sua quarta longa-metragem (antecederam-se "Corpo Celeste", "O País das Maravilhas" e "Feliz como Lázaro").

Quem o diz é Arthur (Josh O'Connor), referindo-se a Beniamina (Yile Yara Vianello), a noiva que perdeu em circunstâncias nunca clarificadas. Arthur é um "corpo estranho", um britânico a viver em Itália, subsistindo de uma atividade ilegal, isto é, o saquear de túmulos etruscos, onde se encontram preciosidades arqueológicas, que os entes queridos dos falecidos deixaram junto dos seus cadáveres para facilitar a entrada das suas almas no Reino dos Céus.

Ora, Arthur tem um dom, consegue sentir, concretamente, debaixo de que troço de terreno é que se encontram estes altares, pressentindo, de forma sobrenatural, o vazio que é, afinal, o mesmo vazio que o desaparecimento de Beniamina deixou no seu âmago. Os italianos chamam a estes saqueadores (aparentemente, mais comuns do que assumiríamos) de tombaroli e Rohrwacher é a primeira reconhecer as suas histórias enquanto fonte de inspiração, no entanto, a caracterização de Arthur afasta-nos sempre do território do filme de aventuras que um termo como "saqueador" nos poderia levar a esperar, aproximando-nos do universo da tragédia, da mitologia.


Afinal, quem é Arthur senão uma reencarnação de Orfeu? Um herói famoso pelo seu sofrimento, para quem não se coloca sequer a possibilidade de um futuro radioso, de um final feliz. Tal como Orfeu, eternamente assombrado pela memória inalcançável de Eurídice, Arthur desce (figurativamente, pelo menos) ao mundo dos mortos em busca da sua amada (e sabemos que é isso que se passa, porque, ao contrário dos restantes tombaroli, Arthur marimba-se continuamente para o dinheiro como se lhe fosse indiferente se tem ou não onde cair morto). Tudo isso é encapsulado por aquele primeiro plano, onde se anuncia, desde logo, a natureza trágica da condição do nosso protagonista, o rosto de Beniamina é o último que conseguirá amar, aconteça o que acontecer, venha o que (ou quem) vier. Pelo caminho, encontrará uma outra mulher, Itália (Carol Duarte), uma imigrante brasileira que procurará estabelecer uma utopia naquele vilarejo italiano (sendo a utopia a transfiguração política do "maravilhamento", como sabemos, a palavra de ordem do cinema de Rohrwacher), mas não é possível sair daquela prisão, o sofrimento e a solidão são o seu destino (uma ideia que, diga-se, além de mitológica, não é inteiramente divorciável do romantismo).

No entanto, o filme não se resume à odisseia de Arthur, há uma vibrante galeria de secundários, da supracitada Itália à deliciosamente irritante Flora, de Isabella Rossellini (há muito que não a víamos a divertir-se assim), passando por Spartaco, negociante de bens roubados interpretada por uma Alba Rohrwacher (irmã gémea da cineasta) fria como a morte, que se vão ver envolvidos numa narrativa que, preferindo as deambulações mágico-realistas que caracterizam o cinema de Alice às noções convencionais de estrutura dramatúrgica, traduz aquela que é, porventura, a preocupação central do seu cinema, nomeadamente, o horror do capitalismo enquanto mecanismo de opressão, exploração e perversão de tudo aquilo que é genuíno e belo.

Belissimamente filmado em película, acentuando o tom artesanal de todo o empreendimento, "A Quimera" tem o sabor de um culminar, encapsulando e sublimando todos os elementos que nos seduziram nos filmes anteriores de Rohrwacher. Toda a gente tem a sua quimera, aquilo que queremos desesperadamente encontrar, ainda que, no fundo, saibamos que ficará permanentemente fora de alcance ou, pelo menos, do nosso alcance. À semelhança de conterrâneos seus como os irmãos Taviani, Carmelo Bene ou Nanni Moretti, o trabalho de Rohrwacher parece sempre ambicionar o impossível (a utopia previamente mencionada), encontrar um novo cinema e um novo mundo, é relativamente improvável que o consiga, mas, aconteça o que acontecer, já nos legou esta obra-prima.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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