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Crítica:

"Eu, Tonya"


Tonya Harding entrou para a história do desporto, devido ao seu talento para a patinagem. No entanto, o nome da americana ficou imortalizado na consciência popular, por motivos bem mais insidiosos. Nomeadamente, pela sua associação à agressão de uma rival, Nancy Kerrigan, atingida no tornozelo com uma barra de ferro retrátil, enquanto treinava para as Olimpíadas, em 1994. Ora, estariam reunidos todos os elementos possíveis e imaginários, para conceber uma narrativa, capaz de encenar um dos mais rocambolescos episódios dos anos 90, mas, Craig Gillespie e Steven Rogers (realizador e argumentista, respetivamente) quiserem ser mais ambiciosos e, compuseram uma tragicomédia, onde a utopia do Sonho Americano é um ideal inatingível. Assim, escapando a simplificações ou clichés, tudo se passa como se se tratasse de uma reportagem. Os atores, sem nunca deixarem de assumir as suas personagens, sentam-se em frente às câmaras e, vão pontuando os acontecimentos, através de sucessivos depoimentos, ocasionalmente contraditórios. Desta forma, viajamos até à infância da protagonista, num exercício de mise en scène, que privilegia o intimismo, revelando os abusos constantes que a mesma sofreu, primeiro às mãos da mãe, depois do marido e, enquadrando a sua progressiva marginalização, pelas elites da patinagem, numa luta de classes intemporal, que parece encontrar nela um símbolo estranhamente genuíno. “Eu, Tonya” é assim, um quadro de insanidade, onde a estupidez humana funciona como um leve contraponto humorístico, para um cenário melancólico, indelevelmente, pautado por múltiplos problemas de ordem social, da misoginia alarmante à desagregação de laços familiares, esta é a América interior, rugosa e impiedosa, onde como às tantas se diz (mas, de forma mais profana) “ser simpático, não te leva a lado nenhum”.


Realização: Craig Gillespie
Argumento: Steven Rogers
Género: Drama, Comédia
Duração: 120 minutos

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