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"Green Book: Um Guia Para a Vida"


A presidência de Donald Trump correspondeu a um violento sopro no castelo de cartas que é a sociedade americana, desencadeando uma multiplicidade de situações grotescas e chocantes que realçaram o estatuto do preconceito como uma ferida que ainda arde. Claro está, que os EUA não foram os únicos a embarcar numa odisseia regressiva (social, política ou moralmente falando) com um governante interessando em legitimar as piores tendências do ser humano, no entanto, apetece-nos dizer que nenhuma outra cinematografia mundial assumiu a necessidade de corporizar essa dor como a americana. De examinar o passado e entender de que forma continua a refletir o presente. Exemplo modelar disso mesmo é a mais recente longa-metragem de Peter Farrelly, “Green Book: Um Guia Para a Vida”. Um olhar melancólico e comovente sobre um episódio verídico apagado pelo tempo.

Estamos em 1962. Tony Vallelonga (Viggo Mortensen) é um italo-americano com poucas habilitações que se vê desempregado depois do encerramento do clube noturno onde trabalhava. Sem dinheiro para sustentar a família, necessita urgentemente de encontrar trabalho, antes que se veja forçado a ceder aos avanços de um mafioso local que encara a sua proficiência para a violência como um talento que vale a pena explorar… Certo dia, uma oportunidade tão valiosa como desconcertante “cai dos céus” no seu colo: assumir funções de motorista para Don Shirley (Mahershala Ali), um famoso pianista negro que se prepara para embarcar numa digressão de oito semanas pelo (conservador) sul do país.


Pelo caminho, enfrentam perturbantes manifestações de racismo, sempre enraizadas no tecido social, que se vão traduzindo numa lista quase padronizada de sucessos e impasses que os conduzem a uma jornada de revelação mútua. Afinal, também eles vivem segundo perceções banalmente simplistas que se limitam a reduzir o outro a um mero elemento de um “grupo” uniforme. Por outras palavras, ao encenar um argumento de Nick Vallelonga (filho da personagem principal), Peter Farrelly consegue contar uma história em que as certezas civilizacionais de todos os envolvidos se vão embater na vulnerabilidade dos seus fundamentos. Porém, o elemento mais espantoso do filme é a sua capacidade de executar essa mesma tarefa num balanço harmonioso entre um realismo antiquado muito classicista e uma charmosa e contagiante distanciação irónica.

Resumindo de maneira necessariamente esquemática, Farrelly respondeu a tempos politicamente conturbados com um libelo contido e justo, que comove sem nunca necessitar de tirar dividendos melodramáticos, nem abusar de truques manipulativos (o filme possui mesmo uma candura e simplicidade inabaláveis), Acima de tudo, é uma história de amizade tão sóbria quanto delicada, que encontra no trabalho do seu notável elenco um valor absolutamente essencial. Principalmente, nos dois protagonistas, Viggo Mortensen e Mahershala Ali. O primeiro completamente irreconhecível no corpo obeso de um italo-americano espirituoso e descontrolado. O segundo a assumir-se novamente como um dos maiores atores dos nossos tempos, naquele registo muito seu, sempre a meio caminho entre a leveza casual e a tragédia iminente. Isto é, dir-se-ia, que Farrelly sabe levar até às últimas consequências uma visão histórica e cinematográfica, em tudo e por tudo estranha à sedução pueril dos "efeitos especiais". O impacto de “Green Book”, antes de mais nas salas de cinema norte-americanas onde continua a atrair espetadores regularmente depois de 3 meses em exibição, é apenas mais uma prova de que as temáticas adultas são, afinal, um valor inestimável da tradição estética e política de Hollywood.


Título Original: "Green Book"
Realização: Peter Farrelly
Argumento: Nick Vallelonga, Brian Hayes Currie, Peter Farrelly
Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini
Ano de Produção: 2018
País: EUA
Duração: 130 minutos

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