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"A Favorita", de Yorgos Lanthimos


Yorgos Lanthimos sempre filmou numa terra de ninguém apenas sua. Rejeitando convenções estéticas e narrativas e assumindo sempre uma maneira muito peculiar de ver o mundo. Encarado como um descendente de autores como Peter Greenaway, Michael Haneke ou Franz Kafka, Lanthimos nunca se coíbe de convocar elementos aparentemente rocambolescos, nem tem medo de alienar o público com um sentido de humor doentio que pode mesmo ferir sensibilidades. No entanto, apesar de ter iniciado a chamada “nova vaga grega” (Athina Rachel Tsangari ou Alexandros Avranas seriam outros dos seus representantes), o seu cinema permanecia restringido aos círculos cinéfilos.

Isto até à chegada de “A Favorita”, reinterpretação de um boato com 400 anos, sobre um suposto caso amoroso extraconjugal entre a rainha Anne de Inglaterra (Olivia Colman), última monarca da casa Stuart, e Sarah Churchill (Rachel Weisz), duquesa de Malborough, sua amiga de infância, confidente e favorita na corte, com poderes que incluíam a gestão das finanças reais. O argumento de Deborah Davis e Tony McNamara (Lanthimos nunca antes tinha trabalhado um argumento que não fosse da sua autoria), introduz ainda uma terceira personagem: Abigail Masham (Emma Stone), uma baronesa caída em desgraça, que acaba aprisionada numa estranha e violenta corrida pelo favoritismo da rainha com a prima Sarah.


Acima de tudo, dir-se-ia, que Lanthimos transforma a ação num bailado entre abusadores e abusados, vencedores e vencidos. Na desencantada corte da rainha, existem somente seres egomaníacos e calculistas que reconhecem no outro unicamente um meio para atingir um fim. É uma paisagem desumanizada, onde as relações humanas se passaram a definir pela necessidade e as demonstrações genuínas de qualquer tipo de afeto se tornaram praticamente impossíveis. Afinal, o jogo de sedução que encontramos no centro da narrativa resume-se mesmo a uma batalha por poder.

Trata-se de um conto de “manobras de bastidores” que o cineasta trabalha como uma crónica romanesca, centrada na emoção como fraqueza num mundo cruel (os últimos minutos evidenciam isso mesmo com particular dureza). Nesse sentido, não há como ignorar o brilhantismo do trio de atrizes central. Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone, são verdadeiros dínamos que Lanthimos filma como “bonecos” num perverso teatro opressivo e claustrofóbico, Sem maniqueísmos, nem moralismos, o grego volta a impressionar-nos com a sua frieza gélida e humanismo contido, portanto.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “The Favourite”
Realização: Yorgos Lanthimos
Argumento: Deborah Davis, Tony McNamara
Elenco: Olivia Colman, Emma Stone, Rachel Weisz, Nicholas Hoult, James Smith, Mark Gatiss, Joe Alwyn
Produtores: Ceci Dempsey, Ed Guiney, Lee Magiday, Yorgos Lanthimos
Produtores Executivos: Andrew Lowe, Daniel Battsek, Rose Garnett, Josh Rosenbaum, Ken Kao, Tony McNamara, Deborah Davis
Diretor de Fotografia: Robbie Ryan
Design de Produção: Fiona Crombie
Montagem: Yorgos Mavropsaridis
Ano de Produção: 2018
Duração: 120 minutos

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