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"À Porta da Eternidade"


Estamos no coração da temporada de prémios. Isto é, Hollywood quer prestar homenagem aos talentos que se reuniram para produzir o cinema que mais lhes agradou em 2018. Como tal, proliferam as biografias, quase sempre convencionais, desapaixonadas e vazias de conteúdo. No entanto, por vezes, existem surpresas. Pequenos acontecimentos que insistem em desafiar todos e quaisquer rótulos que lhes queiram impor. “À Porta da Eternidade” é um deles. Porquê? Pois bem, porque em vez de se limitar a colecionar os momentos mais emblemáticos da vida de Vincent van Gogh, Julian Schnabel propôs-se a mergulhar na mente do pintor e deixar-se contagiar pelos seus fantasmas.

O filme assume-.se, portanto, como um objeto limite, que parte da solidão primordial do protagonista para relançar a ideia romântica da arte como rutura de qualquer visão determinista ou moralista da experiência humana. Acima de tudo, Schnabel ambiciona e consegue colocar-nos no corpo permanentemente inquieto do holandês, auxiliado pela câmara de Benoît Delhomme (literalmente possuído pelo espírito do biografado) e pela partitura lírica de Tatiana Lisovskaya. O resultado, convenhamos, aproxima-se mais do humanismo contido e poesia serena de Terrence Malick que do maniqueísmo explorador de um “filme” (sejamos simpáticos) como “Bohemian Rhapsody”.


Contudo, nada disto existiria se não fosse pela composição de Willem Dafoe. Um exemplo tocante de subtileza, nunca cedendo a truques ou histrionismos e mantendo sempre uma melancolia quase sacrificial indescritível. Ocasionalmente tendemos a mencionar o ator como alguém que se encontra em serviço de um cineasta, mas aqui somos conduzidos a considerar a possibilidade contrária. O mesmo, atenção, poderia ser dito acerca da admirável galeria de interpretes internacionais (Mathieu Almaric, Oscar Isaac, Mads Mikkelsen, Emmanuelle Seigner…), todos igualmente notáveis e humildes num filme que pouco ou nenhum interesse tem em “explorar” o seu estatuto de estrelas.

Nesse sentido, importará admitir que este não é a primeira vez que um autor genuinamente aventureiro ousou colocar van Gogh no centro de um filme, Maurice Pialat, Vincente Minnelli ou, mais recentemente, o duo Dorota Kobiela e Hugh Welchman já o tinham feito antes. Porém, e mesmo que todos partilhem a obsessão de evidenciar os quadros não como uma maneira de ver o mundo, mas como uma reinterpretação absolutamente radical do mesmo, não existem dois títulos iguais sobre ele, nem sequer similares. Essa permanente e intima procura por um outro van Gogh que seja diferente de todos os outros e especial para quem o retrata, será possivelmente o mais belo elogio que podiam fazer ao homem “que Deus fez pintor para pessoas que ainda não tinham nascido”.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “At Eternity’s Gate”
Realização: Julian Schnabel
Argumento: Jean Claude Carriere, Julian Schnabel, Louise Kugelberg
Elenco: Willem Dafoe, Rupert Friend, Oscar Isaac, Mads Mikkelsen, Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Anne Consigny, Amira Casar, Niels Arestrup, Vladimir Consigny, Vincent Perez, Alexis Michalik, Stella Schnabel, Lolita Chammah, Didier Jarre
Produtor: Jon Kilik
Produtores Executivos: Karl Spoerri, Marc Schmidheiny, Nik Bower, Deepak Nayar, Charles-Marie Anthonioz, Mourad Belkeddar, Jean Duhamel, Nicolas Lhermitte, Thorsten Schumacher, Claire Taylor, Fernando Sulichin, Maximilien Arvelaiz
Diretor de Fotografia: Benoit Delhomme
Montagem: Louise Kugelberg, Julian Schnabel
Ano de Produção: 2018
Duração: 110 minutos

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