Avançar para o conteúdo principal
"Vice", de Adam McKay


As primeiras longas-metragens de Adam McKay eram brilhantes desconstruções das fragilidades do ego masculino. No entanto, a imprensa secundarizou-as sempre devido à sua natureza cómica. Contudo, o sucesso financeiro que os seus títulos anteriores conquistaram, permitiu-lhe convencer a Paramount Pictures a conceder-lhe um desejo: auxiliá-lo a filmar A Queda de Wall Street, uma dissecação dos acontecimentos que conduziram à crise financeira de 2008. O filme valeu-lhe um Óscar de Melhor Argumento Adaptado e representou o começo de um segundo capítulo na filmografia de McKay, que se anunciou bastante interessado em abordar as muitas convulsões sociopolíticas de uma América dividida.

Dessa vontade nasceu Vice. Um contundente exercício satírico que ousa retratar a figura de Dick Cheney, o vice-presidente de George W. Bush. De onde vem o elemento de risco? Pois bem, de três fatores distintos. Primeiro, qualquer tentativa de convocar o nome de Cheney surgirá automaticamente assombrada por um “mediatismo” sensacionalista que contribui mais para o mitificar do que para racionalizar as suas ações. Segundo, ao adotar um olhar assumidamente anti-republicano, McKay corre o risco de alienar o segmento do público que discorde dele. Terceiro, Cheney permanece conhecido pelo secretismo que o guiava, pelo que, quem quiser construir um conto biográfico sobre ele, necessita forçosamente de recorrer à ficção para preencher múltiplas lacunas.


Porventura, por isso, somos imediatamente seduzidos por uma legenda inicial que nos informa dessa mesma necessidade e evidencia o sentido de humor que ajudará o cineasta e argumentista a desmontar a existência do biografado, proclamando o seguinte: “O que se segue é uma história verdadeira. Ou o mais verdadeira possível tendo em conta que Dick Cheney é um dos líderes mais secretistas da história. Mas porra, demos o nosso melhor!” Esboçamos um sorriso e os minutos iniciais limitam-se a legitimá-lo, apresentando os primeiros anos do futuro vice-presidente americano quase em jeito de comédia screwball. No entanto, nem Cheney demora a entrar no mundo da política, nem McKay a conduzir a fita para territórios mais negros…

Para tal, recuperando um dispositivo narrativo que aplicara no antecessor A Queda de Wall Street. Isto é, expor as maquinações de um certo microcosmo, não através de símbolos abstratos ou maniqueísmos simplistas, mas sim como um intrincado sistema de relações entre pessoas, onde o valor de cada individuo se resume mesmo às benesses que possa ter para oferecer a outro. Seguindo essa linha de pensamento, o filme vai-nos revelando um Dick Cheney que aparenta encarar cada interação como um mero elo numa cadeia de construção e consolidação de poder. Daí a importância da estrutura não linear, que consegue gerar uma textura narrativa peculiar e fascinante em que acontecimentos quase sempre distantes no tempo vão ecoando uns nos outros, revelando a perturbante argucia do seu indecifrável protagonista.


Os espetadores mais atentos aos bons filmes que temos visto recentemente, porventura, sentirão a vontade de desenhar paralelismos entre o cenário desumanizado de Vice e o igualmente satírico A Favorita, porém apetece-nos argumentar que Silvio e os Outros, de Paolo Sorrentino, seria uma comparação bem mais certeira, uma vez que ambos procuram encontrar uma dimensão quase transcendental na política. Para o italiano, as deambulações erráticas de Silvio Berlusconi faziam-se numa terra de fantasmas que, em última instância, o lançava para uma exploração onírica da condição humana e da nostalgia como um vicio inescapável. Para o americano McKay, Cheney e os seus companheiros de moral questionável não mais são do que “vampiros”, que se alimentam da ignorância de um povo de tal maneira extenuado dos males do quotidiano que simplesmente se recusa a pensar acerca da sua situação e dos monstros de carne e osso que dela se aproveitam (a última linha de diálogo condena essa atitude, de forma particularmente violenta). Assim, transformando Vice numa complexa tapeçaria emocional, política e moral, inteiramente ancorada num elenco preenchido por composições de muitas e intrincadas nuances emocionais (Christian Bale e Steve Carell são exemplos particularmente brilhantes disso mesmo).

Se quisermos manter essa lógica (e tudo indica que é isso que McKay deseja), então, Vice nem é bem um filme sobre Cheney, mas sim uma experiência cinematográfica que ambiciona utilizá-lo como veículo para questionar o porquê da indiferença global que tem conduzido seres quase demoníacos a cargos de liderança. Mas, Cheney também não é uma escolha aleatória, porque como nos é comunicado com inteligência e crueldade num momento particularmente inteligente, o mesmo passou anos à procura de uma ideologia que se adequasse a ele, até entender que não necessitava de uma, apenas de uma estratégia que lhe permitisse alcançar o poder que tanto cobiça.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Vice”
Realização: Adam McKay
Argumento: Adam McKay
Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Steve Carell, Sam Rockwell, Tyler Perry, Alison Pill, Eddie Marsan, Justin Kirk, LisaGay Hamilton, Jesse Plemons, Bill Camp, Don McManus, Lily Rabe, Shea Whigham
Produtores: Brad Pitt, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Will Ferrell, Adam McKay, Kevin J. Messick
Produtores Executivos: Megan Ellison, Chelsea Barnard, Jillian Longnecker, Robyn Wholey, Jeff G. Waxman
Diretor de Fotografia: Greg Fraser
Design de Produção: Patrice Vermette
Montagem: Hank Corwin
Ano de Produção: 2018
Duração: 132 minutos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...