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"Agradar, Amar e Correr Depressa", de Christophe Honoré


Habituámo-nos a encarar Christophe Honoré como alguém ligado a uma certa tradição musical, porventura, enraizada do trabalho do seu compatriota Jacques Demy (1931-1990). No entanto, esse hábito também exclui um importante aspeto acerca do cinema de Honoré. Nomeadamente, o seu gosto pelo melodrama como um modelo de prospeção afetiva e exposição da dimensão mais íntima das relações humanas. A certo ponto, houve mesmo quem começasse a reconhecer nele um descendente de alguns de ícones como François Truffaut (1932-1984) ou Jean Renoir (1894-1979). Contudo, o autor que tanto parecia prometer com títulos como “Les Chansons d'Amour” (“As Canções de Amor”, 2007) ou “La Belle Personne” (“A Bela Junie”, 2008), não demorou a entrar numa triste rotina criativa que fez dos seus filmes subsequentes constantemente desapontantes. Do ainda inédito no mercado português “Homme au Bain” (2010) à verdadeiramente pavoroso “Les Malheurs de Sophie”, Honoré aparentava ter perdido aquela desenvoltura cómico-melancólica dos primeiros tempos. Acontece que, finalmente (estreia-se um ano depois de ter passado pelo Festival de Cannes) o admirável “Plaire, Aimer et Courir Vite” (“Agradar, Amar e Correr Depressa, 2018), vem evidenciar que vale mesmo a pena permanecer atento ao muito conturbado percurso de Honoré, naquele que será, porventura, o seu filme mais perfeito.

Parcialmente autobiográfico (já “As Canções de Amor” o era), nele conhecemos Jacques (Pierre Deladonchamps, de “O Desconhecido do Lago”), um romancista e dramaturgo que tenta viver o melhor que pode sabendo que a sua condição de seropositivo, no início dos anos 90 (um assombramento da época), garante que não sobreviverá muito mais tempo. Durante uma viagem à Bretanha, conhece Arthur (Vincent Lacoste), um charmoso e divertido jovem que não lê autores vivos e sai à noite para se envolver com estranhos. Jacques apaixona-se perdidamente, mas, é doente demais para se apaixonar uma última vez. Só que Arthur não cessará de tentar convencê-lo do contrário…


Equilibrando a narrativa numa eloquente dança constante entre a possibilidade utópica do amor e a certeza da eminência da morte, Honoré conjuga esperança e cinismo, aquele seu sentido de humor inconfundível com uma melancólica indescritível, num retrato que tem tanto de aventura iniciática (nas experiências do estudante) como conto elegíaco (no quotidiano conturbado e violento do escritor), conseguindo um balanço raro entre comédia e drama, fatalismo e ironia, escapando sempre as armadilhas que esses dois elementos carregam em si. 

Nesse sentido, dir-se-ia que estamos perante uma construção fílmica em que a sida não é um “tema” que afunila a narrativa em qualquer dispositivo moralista, tratando-se, afinal, de colocar em cena a pluralidade interior das relações entre pessoas vivas, fascinantes e contraditórias. Isto é, integrar tudo o que vai da verdade primordial do desejo até à perceção social da doença. Enfim, em tempos de super-heróis boçais (“Vingadores: Endgame” continua a ser o filme mais visto do país), Honoré reúne uma fabulosa trupe de atores para nos relembrar que o melhor e mais impressionante “efeito especial” continua a ser o fator humano.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Plaire, Aimer et Courir Vite”
Realização: Christophe Honoré
Argumento: Christophe Honoré
Elenco: Vincent Lacoste, Pierre Deldonchamps, Denis Podalydès, Adèle Wismes, Thomas Gonzalez, Clément Métayer, Quentin Thébault, Tristan Farge, Sophie Letourneur
Produtores: Philippe Martin, David Thion
Direção de Fotografia: Rémy Chevrin
Montagem: Chantal Hymans
Director Artístico: Stéphane Taillasson
Guarda-Roupa: Pascaline Chavanne
Ano de Produção: 2018
Duração: 132 minutos

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