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"John Wick 3 - Implacável"


Aquando do lançamento do primeiro tomo da franquia “John Wick”, ninguém ousaria pensar que algum dia pudessem sequer haver rumores acerca de uma eventual sequela. Afinal, o próprio estúdio pouco ou nada fez por ele. A campanha promocional começou com apenas uma semana de antecedência, não foram organizados visionamentos para os meios de comunicação mais próximos da indústria e os analistas encaravam a fita como estando condenada a tornar-se um fracasso. No entanto, o conto de um assassino profissional reformado e enlutado (encarnado na perfeição por Keanu Reeves) que matou 86 pessoas devido ao homicídio da sua cadela, transformou-se num clássico de culto imediato. Volvidos 5 anos, encontramo-nos agora no terceiro capítulo e se é sobre ele que vamos falar, então, importa começar pelo título. Acontece que, originalmente o subtítulo que a tradução portuguesa escolheu substituir pela opção francamente genérica de “Implacável” é “Parabellum”, um termo em latim que significa qualquer coisa como “preparem-se para a guerra”. Porquê mencionar esse detalhe? Pois bem, porque a nosso ver não se trata somente de um subtítulo, mas sim de uma mensagem direcionada ao espetador. Isto é, “John Wick 3” é um filme bélico tão sanguinolento e caótico como “O Resgate do Soldado Ryan” (Steven Spielberg, 1998) ou “Beasts of No Nation” (Cary Joji Fukunaga,2015). Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta odisseia não é aconselhável a estômagos fracos.

Desta vez, a ação inicia imediatamente a seguir ao final do segundo tomo, quando John Wick cometeu o erro de matar um inimigo no Continental Hotel, o luxuoso estabelecimento que oferece estadia num território neutro aos elementos do submundo do crime. Um ato que causa a sua excomungação da ordem de bandidos que gerem essas instalações turísticas, uma organização sinuosa a quem chamam High Table e coloca a sua cabeça a prémio, convencendo todos os seus pares a persegui-lo durante os 130 minutos que se seguem. Contudo, quem conhecer a franchise em causa, saberá que a mesma não se passa no nosso universo, mas sim num outro, onde quase todos os figurantes, desde os vendedores de rua aos sem-abrigo, carregam consigo uma ou duas armas e fazem uso do seu disfarce para continuarem a pertencer a uma antiga sociedade que opera com recurso a rituais arcaicos, códigos e juramentos de sangue. Um mundo, onde (num dos momentos mais prazerosos da fita) é perfeitamente plausível, entrar no Teatro Tarkovsky. Um imponente edifício, onde se treinam assassinos nos intervalos dos ensaios de uma produção de “O Lago dos Cisnes”.


Estamos, portanto, perante uma experiência excêntrica e excessiva que nunca se contem na hora de expandir a mitologia de um universo levemente reminiscente do de “Holy Motors” (Leos Carax, 2012), nem nas sequências de ação extraordinariamente elaboradas a ponto de se assemelharem a hipnotizantes bailados de sanguinolência, ossos quebrados e nódoas negras. Nesse sentido, “John Wick 3” parece tão inspirado no cinema de ação asiático (John Woo e Gareth Evans serão obviamente dois heróis para Stahelski) como no género musical. Por mais estranho que isso possa parecer, o cineasta é um confesso entusiasta de musicais, e os movimentos incessantes que vemos no seu filme têm muito a ver com a possibilidade de um cenário graciosamente violento. De uma luta numa loja chinesa de antiguidades que se torna numa perseguição a cavalo até batalha que envolve uma imperial Halle Berry a comandar uma dupla canina sedenta de carne humana.

Não se trata de uma tentativa de criar um suposto culminar do género. Pelo contrário, aquilo que Stahelski ambiciona é somente reivindicar um certo tipo de cinema que terá falecido devido à sua excessiva seriedade e falta de inventividade. Neste “filme perseguição” (não víamos nada assim desde “Mad Max: Estrada da Fúria”), há espaço para tudo: ninjas, artes marciais, tiroteios delirantes e batalhas improvisadas com os materiais que existem à vista (começamos logo com uma batalha numa biblioteca), e nesse aparente “simplismo” narrativo, apetece dizer que caso queiramos seguir essa linha de pensamento, encontramos aqui quase um pequeno manifesto. Face às aventuras entediantes dos super-heróis da Marvel e DC Comics e os títulos, digamos, mais sérios que vão chegando com cunho autoral, Stahelski pede espaço para um cinema puramente estético que existe quase como uma celebração de si mesmo. E que bela celebração é “John Wick 3”.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “John Wick: Chapter 3 - Parabellum”
Realização: Chad Stahelski
Argumento: Derek Kolstad, Shay Hatten, Chris Collins, Marc Abrams
Elenco: Keanu Reeves, Ian McShane, Lance Reddick, Laurence Fishburne, Mark Dacascos, Asia Kate Dillon, Halle Berry, Saïd Taghmaoui, Jerome Flynn, Jason Mantzoukas, Tobias Segal, Boban Marjanovic, Anjelica Huston, Cecep Arif Rahman, Yayan Ruhian
Produtores: Basil Iwanyk, Erica Lee
Produtores Executivos: Chad Stahelski, David Leitch, Joby Harold, Jeff Waxman
Diretor de Fotografia: Dan Laustsen
Guarda-Roupa: Luca Mosca
Montagem: Evan Schiff
Duração: 130 minutos
Ano de Produção: 2019
Distribuidor: PRIS Audiovisuais

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