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"The Beach Bum: A Vida Numa Boa", de Harmony Korine


Aquando do lançamento de “Gummo” (1997), Harmony Korine visitou o programa de David Letterman para promover a sua primeira longa-metragem. A certo ponto, o entrevistador perguntou-lhe que motivos o convenceram a perseguir uma carreira no cinema. O mesmo limitou-se a responder que o panorama contemporâneo do cinema americano andava acorrentado a banais convenções pré-formatadas que não o entusiasmavam. Passadas quase três décadas, o autor que muitos encaram como um enfant terrible semelhante a outros provocadores como Gaspar Noé, Bertrand Mandico ou Yann Gonzalez, evidencia-se como um dos últimos anarcas estadunidenses. Um obstinado representante de um cinema poético que procura a transcendência por via da marginalidade, que almeja ascender ao céu pelo excesso do pecado. Exemplo modelar disso mesmo é “The Beach Bum: A Vida Numa Boa”, uma experiência intoxicante, a meio caminho entre John Cassavetes (1929–1989) e Terrence Malick, que acompanha as deambulações erráticas de um poeta envelhecido que tenta encontrar a felicidade genuína num hedonismo extremo, enquanto o mundo à sua volta se desmorona.

Ele é Moondog (Matthew McConaughey), um espírito livre, longe do rancor, mas não isento de sofrimento, que recusa quaisquer amarras e coações, sejam elas familiares ou sociais, dedicando os seus dias e noites a vaguear de cerveja e charro na mão por uma Miami iluminada pelo néon. Para si, o importante é experienciar prazer constantemente, afinal, como o próprio confessa: “Só me quero divertir”. No entanto, o falecimento súbito da sua mulher (Isla Fisher) expõe o hedonista à possibilidade da pobreza (era a riqueza que a esposa herdou da família que financiava o seu estilo de vida decadente) ou da entrada numa qualquer clínica de reabilitação ou cela prisional. Contudo, uma vez que, Moondog se mantêm militantemente determinado a não encarar nenhum aspeto da sua existência com seriedade nada disso o parece afetar grandemente. Como tal, o resto da película converte-se num sereno exercício de intimismo, à medida que vamos seguindo os passos de Moondog e os seus encontros com uma vasta galeria de personagens bizarras, como um pirómano cristão (Zac Efron), com uma interpretação só sua dos ensinamentos bíblicos ou um piloto de helicópteros (Donovan St V. Williams) que necessita de consumir uma certa quantidade de marijuana para desempenhar as suas funções laborais.


Korine nunca ocultou o seu fascínio por personagens anticonformistas que procuram construir uma nova sociedade por não se reverem na existente (pensemos em “Julien Donkey-Boy” ou “Trash Humpers”). Nesse sentido, Moondog será, porventura, a criação que melhor reflete as suas preocupações e desejos pessoais. Isto é, um artista visionário que ambiciona alcançar um estado de juventude eterna (uma temática recorrente na sua filmografia), no processo, rejeitando todos e quaisquer rótulos que o mundo em redor lhe quiser atribuir e mantendo uma posição sempre contestatária quando alguém o tenta convencer a sucumbir às normas pelas quais se regem os comuns mortais. Posto isto, nada disso funcionaria senão houvesse um McConaughey notável, a libertar-se da sua “imagem de marca” de galã e a assumir toda uma nova fisicalidade e voz para criar este anti-herói dos tempos modernos. Das suas indumentárias espalhafatosas a uma gargalhada tão característica que parece tornar-se icónica quase de imediato. Nos últimos anos, pudemos ver o ator texano em inúmeros personagens que exigiam algum tipo de transfiguração, mas nunca como em “The Beach Bum”. Um sentimento que, aliás, se estende aos restantes membros do elenco, celebridades como Zac Efron ou Jonah Hill que desaparecem por completo para dar lugar a seres peculiares, alternadamente sebosos e charmosos, contudo, sempre extraordinariamente cativantes.

Quem também contribui e muito para o resultado final é o diretor de fotografia Benoît Debie (um colaborador habitual do realizador), que providencia a cada sequência uma certa aura etérea que vai sendo acentuada pelo uso e aproveitamento das luzes artificiais e espampanantes nas cenas noturnas, sem esquecer os luscos fuscos que parecem proclamar esta Miami que tantas vezes vemos em ruínas, como um portal para uma possível transcendência. Acontece que, no seu sentido de humor perverso e melancolia serena, “The Beach Bum” é mesmo isso: uma longa busca por esse tal sentimento transcendente, que tanto parece estar "ao virar da esquina" como ser um objetivo inalcançável, fazendo também do filme uma “faca de dois gumes”. Por um lado, uma comédia descontraída e politicamente incorreta como nenhuma outra. Por outro, um elogio fúnebre ao seu próprio bacanal sem fim. Ora, no meio de tudo isto, apenas um elemento nos parece certo, ou seja, os corajosos que se quiserem submeter à magia de Korine saíram muito bem recompensados com uma comovente experiência sensorial, que corresponde a mais uma fascinante entrada nos cânones de um dos autores mais idiossincráticos dos nossos tempos.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “The Beach Bum”
Realização: Harmony Korine
Argumento: Harmony Korine
Elenco: Matthew McConaughey, Snoop Dog, Isla Fisher, Jimmy Buffett, Zac Efron, Martin Lawrence, Jonah Hill, Donovan St V. Williams, Stefania LaVie Owen
Produtores: Charles-Marie Anthonioz, Mourad Belkeddar, Steve Golin, John Lesher, Nicolas Lhermitte
Produtores Executivos: Nik Bower, Danny Gabai, Jasmin Kirner, Eddy Moretti, Deepak Nayar, George Parra, Marc Schmidheiny, Thorsten Schumacher, Shane Smith, Karl Spoerri, Will Weiske
Direção de Fotografia: Benoît Debie
Montagem: Douglas Crise
Direção Artística: J. Mark Harrington
Guarda-Roupa: Heidi Bivens
Ano de Produção: 2019
Duração: 95 minutos

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