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"Brightburn: O Filho do Mal", de David Yarovesky


Os super-heróis tornaram-se personagens omnipresentes no panorama contemporâneo. Em teoria, nada contra. No entanto, admitamos que as aventuras produzidas pelos estúdios Marvel e DC Comics tendem a permanecer fiéis a certos modelos narrativos que pouco espaço deixam para a inovação. Nesta conjuntura, precisamos, portanto, de autores inteligentes e habilidosos que consigam propor novas e interessantes variações acerca da temática. Autores como David Yarovesky que, ao encenar a história de um casal de fazendeiros que adota uma criança vinda do espaço sideral, consegue mesmo conceber um sanguinolento e perturbador conto sobre o magnetismo do Mal, tendo como ponto de partida centenas de fitas e livros de banda-desenhada que procuravam exaltar o caráter ético e moral dos seus protagonistas. Isto é, uma subversão de uma literatura

Mas, comecemos pelo princípio. Em 2006, Tori (Elizabeth Banks) e Kyle (David Denman) levam uma vida simples numa fazenda envelhecida em Brightburn, uma vila nos arredores do Kansas. Ambos rezam para que ela consiga engravidar, contudo, as suas preces continuam sem resposta. Uma noite, o impossível acontece. Uma nave espacial aterra nas imediações do seu celeiro, com um único passageiro: um bebé. O duo encara o sucedido como uma dádiva de Deus e adota o rapaz. Passados alguns anos, o mesmo atinge a puberdade e começa a experienciar estranha s sensações que nele desencadeiam impulsos violentos. Ou seja, enquanto figuras como o Super-Homem ou Thor abandonaram as suas origens para ajudar a humanidade na sua incessante busca por um futuro melhor, o protagonista de “Brightburn” e os seus instintos psicóticos representam a negação desses ideais utópicos.


O argumento de Brian e Mark Gunn é um brilhante cruzamento de referências temáticas, que não tem medo de convocar componentes de um certo melodrama de recorte clássico, para um conto de terror acabando por privilegiar o labor dos atores, em particular, Elizabeth Banks que compõe uma personagem verdadeiramente trágica como a mãe incapaz de aceitar a natureza psicótica do filho, mesmo quando confrontada com evidentes sinais da mesma. Já Yarovesky sabe conjugar todos os elementos que o argumento lhe providencia, criando uma película esteticamente refinada, que mantêm um clima de puro assombramento desde o primeiro segundo, construindo uma película diabolicamente intensa e empolgante, que ainda é capaz de apresentar um par de momentos satíricos de excelência, que o proclamam claramente como um cineasta que importa manter debaixo de olho.

Na ficha técnica de “Brightburn: O Filho do Mal” encontramos também o nome de James Gunn na categoria de produtor. Escusado será dizer, que o nome do realizador da franquia “Guardiões da Galáxia” terá sido decisivo no trajeto do filme (Yarovesky já admitiu que sem o seu apoio, nunca teria conseguido encontrar quem financiasse a sua visão) que, aliás, tem múltiplas e muito discretas homenagens ao seu trabalho (há uma suculenta referência ao clássico “Slither: Os Invasores”, assinado por Gunn e também protagonizado por Elizabeth Banks). Não é a primeira vez que o vemos a emprestar o “crédito” que acumulou na indústria para auxiliar jovens cineastas e esperemos que não seja a última, uma vez que, o mesmo parece ter um talento peculiar para encontrar novas e entusiasmantes vozes no cinema de género.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Brightburn”
Realização: David Yarovesky
Argumento: Brian Gunn, Mark Gunn
Elenco: Jackson A. Dunn, Elizabeth Banks, David Denman, Matt Jones, Meredith Hagner, Emmie Hunter, Gregory Alan Williams, Annie Humphrey
Produtores: James Gunn, Kenneth Huang
Produtores Executivos: Dan Clifton, Nic Crawley, David Gendron, Brian Gunn, Mark Gunn, Simon Hatt, Kent Huang, Ali Jazayeri
Música: Tim Williams
Direção de Fotografia: Michael Dallatorre
Montagem: Andrew S. Eisen, Peter Gvozdas
Décors: Patrick M. Sullivan Jr.
Direção Artística: Christian Snell
Guarda-Roupa: Autumn Steed
Duração: 91 minutos
Ano de Produção: 2019

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