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"Caminho Sem Retorno", de Mike P. Nelson

Em 2003, a Constantin Film levou-nos aos bosques montanhosos da Virgínia, nos Estados Unidos, onde conhecemos uma família de canibais particularmente famintos. Chamava-se "Escolha Mortal", acompanhava um sexteto de indivíduos que optaram por seguir um atalho insuspeito e o filme conseguiu escapar ao desdém da imprensa especializada e tornar-se num pequeno sucesso de bilheteira. Aliás, o que aparentava ser uma inconsequente tentativa de conceber um "Terror nas Montanhas" para um novo público, acabou por representar o início de uma franquia que nunca replicou o burburinho provocado pelo capítulo introdutório.

No entanto, encontramo-nos no século XXI, onde nenhuma marca permanece enterrada por muito tempo, portanto, é normal que a Constantin Film pretenda ressuscitar "Escolha Mortal", estranho é que o tenham conseguido fazer com um filme tão inteligente, capaz de por a um canto qualquer um dos seus predecessores. Acima de tudo, aquilo que o realizador Mike P. Nelson nos propõe é uma reinvenção completa, que se livra dos canibais consanguíneos que se escondiam na floresta e os substitui por uma ameaça bem mais amedrontadora.

Em "Caminho Sem Retorno" (numa escolha curiosa, o distribuidor optou por não recuperar o título nacional dos primeiros sete filmes), conhecemos um sexteto de jovens que decidem percorrer o famoso trilho da cordilheira dos Apalaches, no estado de Virgínia. Contudo, ao fazerem um pequeno desvio do caminho assinalado, chocam com um grupo de indivíduos mascarados, cujo código moral é bem diferente do dos demais... Entretanto, seis semanas depois, o pai (Matthew Modine) de um das desaparecidas, conclui que a única maneira de descobrir o que terá sucedido à filha é partir numa investigação própria, mas, cedo entenderá que a realidade é muito mais complexa (e assustadora) do que pensava.

O conceito é essencialmente o mesmo, o único elemento diferenciador em "Caminho Sem Retorno" é mesmo a mudança de antagonistas, colocando de lado a família de canibais esfomeados que popularizaram a franquia, em prol de um novo séquito de imponentes figuras, menos cartoonescas e, consequentemente, mais ameaçadoras. Essa troca acaba por se evidenciar mesmo como um golpe de génio, introduzindo um sentimento de imprevisibilidade que nunca se dissipa. Em "Escolha Mortal" sabíamos sempre com o que contar, aqui damos por nós tão confusos como os jovens, não sabendo o que se avizinha, mas tendo a consciência de que será violento.

Nesse sentido, o argumento de Allan B. McElroy é uma eloquente máquina de revelações chocantes, que nos guia etapa a etapa por uma odisseia de sobrevivência minada de perigos, onde a brutalidade se encontra sempre à espreita. Assim, as nossas expectativas são constantemente subvertidas, enquanto o filme vai demonstrando uma vontade de abordar a situação política da América contemporânea, marcada por divisões ideológicas que muitos consideram irreconciliáveis. "Caminho Sem Retorno" é, afinal, um caleidoscópio sanguinolento sobre o confronte entre a cidade e o campo, a necessidade do ser humano de encontrar uma comunidade a que possa pertencer e, claro, todas as coisas horríveis que podem suceder quando os nossos ideias de decência colidem.

A primeira surpresa do verão está aqui.

TEXTO DE MIGUEL ANJOS

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