Avançar para o conteúdo principal

 

"SUPERNOVA", DE HARRY MACQUEEN

Primeiro, à boleira dos Óscares, as salas de cinema nacionais receberam "O Pai", viagem literalmente alucinante até aos confins de uma mente em dissolução, sempre ancorada na perspetiva de um idoso com demência. Depois, veio "Blackbird - A Despedida", o retrato cómico-melancólico do último fim-de-semana de uma matriarca que escolheu morrer antes de permitir que uma doença degenerativa lhe tire a autonomia por completo. Agora, já na chamada silly season, quando os primeiros blockbusters do verão começam a aparecer, a NOS Audiovisuais conclui esta trilogia temática com aquele que é possivelmente o melhor e mais doloroso dos três filmes: "Supernova", a segunda longa-metragem do ator britânico Harry Macqueen, o melodrama impossivelmente íntimo que nos dilacera subtilmente.

Tusker (Stanley Tucci) e Sam (Colin Firth), um americano e um inglês, partilham a cumplicidade de quem se conhece (e ama) há muito tempo. O primeiro é um romancista a quem foi diagnosticada uma demência severa e precoce, enquanto o segundo é um reputado pianista que colocou de lado as suas responsabilidades laborais para tomar conta do companheiro. Certo dia, Sam recebe um convite para voltar aos palcos, instintivamente reage com relutância, contudo, Tusker convence-o a aceitar, levando o casal a alugar uma autocaravana para viajar até ao local do concerto, pelo caminho, visitando os locais e pessoas que mais marcaram as suas vidas. No entanto, Tusker tem planos que Sam desconhece...

Recusando todos e quaisquer clichés melodramáticos, Macqueen nunca nos providencia momentos bombásticos de emoção, mantendo-se sempre fiel a um tom discreto e subtil que nos convence imediatamente da intimidade que os protagonistas partilham. De facto, desde a primeira cena somos imediatamente convocados a seguir o quotidiano dos dois, assistindo aos pequenos nadas e silêncios próprios de uma relação tão longo. Entre cumplicidades, gestos de ternura e desentendimentos de rotina, Tucci e Firth são exemplares, assumindo o sofrimento de quem reconhece que o fim se aproxima rapidamente.  Trata-se de um par de performances de fina suavidade e minuciosa candura, ocasionalmente, conseguindo mesmo surpreender-nos com momentos de humor que encontram um certo otimismo nas piores circunstâncias imagináveis. É caso para dizer que "Supernova" tanto nos perturba como nos apazigua, encenando um romance eloquente que realça a beleza das pequenas coisas.

Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...