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CRÍTICA - "UMA RÉSTIA DE ESPERANÇA"

A nossa atualidade cinematográfica encontra-se perversamente inflacionada. Afinal, colocando de lado os muitos filmes que estreiam nas plataformas de streaming semanalmente (esta semana, por exemplo, os nossos computadores recebem títulos como "Águas Profundas", "Master", "À Dúzia é Mais Barato" ou "Visitas Inesperadas"), é inevitável constatar que o número de títulos que os nossos distribuidores levam às salas atingiu um patamar francamente delirante. Fiquemos com o seguinte (e ilustrativo) exemplo, só ontem, quinta-feira 17 de março, estrearam-se nove longas-metragens (duas delas nem sequer se encontram em exibição na capital). A hecatombe de estreias faz com que haja uma percentagem mínima de filmes protegidos por grandes campanhas promocionais, enquanto os outros, silenciosamente, batalham pela atenção dos espetadores.

"Uma Réstia de Esperança" é um desses filmes. Um melodrama britânico, de recorte clássico, sustentado pelo trabalho de um excecional trio de atores (Annette Bening, Bill Nighy e Josh O'Connor), tendo como base a peça “The Retreat from Moscow”, da autoria de William Nicholson, que adapta o seu próprio texto, acumulando funções de argumentista e realizador. Nele, acompanhamos Grace (Bening) e Edward (Nighy), cujo matrimónio tumultuoso se prolonga há quase três décadas. Os dois vivem numa pequena cidade costeira inglesa, junto à enseada de Hope Gap. As suas vidas parecem relativamente felizes, até ele confessar ter-se apaixonado por outra mulher e pedir o divórcio. Chocada com o que acaba de saber, Grace sente-se perdida. As convulsões afetivas enredam-se com a presença de Jamie (O'Connor), o filho que vive em Londres e visita os pais de forma irregular...

Estando no campo do mais antiquado melodrama (e, atenção, o termo "antiquado" é tudo menos insultuoso), ainda para mais com raízes teatrais, Nicholson privilegia as palavras que circulam naquele labirinto privado. À semelhança do recente "Drive My Car", o importante é justamente retratar a dificuldade de verbalizar aquilo que se sente, de comunicar com o outro. Por alguma razão, a demanda de Grace dirigida a Edward envolve o desejo de que ele fale, não pare de falar, mesmo que isso pareça ir contra a sua maneira de ser.

Annette Bening e Bill Nighy são magníficos na representação dessa relação conjugal cuja ilusória naturalidade vai ser drasticamente posta à prova. No papel do filho, Josh O'Connor (reconhecemo-lo devido a um extraordinário filme, chamado "God's Own Country", que abrilhantou a programação do Queer Lisboa há uns anos) consegue encarnar a ambivalência de sentimentos que o faz viver num ziguezague moral, também ele habitado por muitas palavras por dizer, entre o pai e a mãe. Sem esquecer que William Nicholson sabe tirar o melhor partido da paisagem costeira, transformando a bucólica Seaford numa verdadeira personagem da história de Grace e Edward, dir-se-ia, mesmo um pequeno paraíso perdido, desencantado com as tragédias humanas que nele têm lugar. Às vezes, parece que até conseguimos sentir o cheiro a maresia.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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