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CRÍTICA - "ADEUS, IDIOTAS"

Quando mencionamos os mais importantes autores do cinema francófono contemporâneo, esquecemo-nos sistematicamente do seu nome, contudo, Albert Dupontel é mesmo um realizador que importa manter debaixo de olho. Quem viu "Gravidez de... Alto Risco" (2013) e "Até Nos Vermos Lá em Cima" (2017), certamente, reconhecerá nele um contador de histórias francamente idiossincrático, possuidor de uma capacidade inata para combinar os elementos mais burlescos da comédia com a acutilância da tragédia.

Assim volta a acontecer em "Adeus, Idiotas", que, em 2021, arrebatou 6 Césares (os Óscares do cinema francês), incluindo Melhor Filme, Realizador e Argumento Original. Nele, acompanhamos Suze Trappet (Virginie Efira), uma cabeleireira de 43 anos, que ao ser diagnosticada com uma doença terminal, entende que necessita de encontrar o filho que foi forçada a abandonar quando tinha apenas 15 anos. Na sua via sacra pelos labirintos da burocracia, o seu caminho cruza-se com o de JB (Dupontel), um informático cinquentão a sofrer um esgotamento, e do Sr. Blin (Nicholas Marie), um arquivista cego muito dado a excessos de entusiasmo.

Efira, que recentemente saltou das comédias românticas de raiz popular que a tornaram numa estrela para produções com cunho autoral (vimo-la em "Benedetta" no passado mês de Novembro, a título de exemplo), é exímia no papel de Suze, imbuindo a sua personagem de uma sensação de desespero que cedo se torna palpável, e a sua química com Dupontel é irrepreensível, vê-los a contracenar é alternadamente hilariante e comovente. Posto isto, importa não esquecer a contribuição valiosa de Marie, cuja energia excêntrica encapsula a verve burlesca de "Adeus, Idiotas".

No entanto, o que eleva "Adeus, Idiotas" ao estatuto de "grande filme" é a qualidade da escrita e realização de Dupontel, a combinar um sentido de humor desencantado com o melodrama de veia humanista. É um daqueles casos raríssimos de um filme que mesmo a coragem necessária para nos trocar as voltas, deixando-nos mais ou menos incapazes de determinar em que pé estamos a cada momento. Num momento em que tanta gente se contenta com cinema pré-formatado e previsível, Dupontel convoca-nos para experienciar uma odisseia febril, empolgante e angustiante, que nos dá rigorosamente tudo aquilo que possamos desejar de um filme (gargalhadas, lágrimas, surpresas, etc.) em apenas 87 minutos. "Até Nos Vermos Lá em Cima" colocou as expectativas para uma nova longa-metragem de Dupontel bem alto e "Adeus, Idiotas" não desiludiu.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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