Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "I COMETE - UM VERÃO NA CÓRSEGA"

Reminiscente de “Tampopo” e “Slacker”, “I Comete”, a primeira longa-metragem de Pascal Tagnati (encontramo-lo, recentemente, no elenco de “Laranjas Sangrentas”), aparece nas nossas salas de cinema, em plena canícula, para nos oferecer a oportunidade de passar um verão na Córsega. Em “I Comete”, existem resquícios de uma estrutura narrativa, no entanto, isso pouco interessa a Tagnati, que dedica a sua atenção a retratar pequenas vinhetas, quase sempre protagonizadas por personagens diferentes (embora, cheguem a existir algumas que reaparecem pontualmente), que lidam com assuntos do quotidiano, seja uma família que se desagrega, dois irmãos que entendem que a relação incestuosa que mantêm se aproxima do fim ou um homem que tenta cultivar uma espécie de “caso amoroso” com uma camgirl.

Sobre a Coca-Cola, Fernando Pessoa terá dito que “primeiro se estranha e depois se entranha”. Podemos aplicar a mesma expressão a “I Comete”, um filme que começa mesmo por parecer difuso e inconsequente, mas, rapidamente, nos surpreende pelo efeito cumulativo dos retratos apresentados. À primeira vista, não há nada de extraordinariamente novo na proposta de Tagnati, contudo, um olhar atento revela um cuidado humano e humanista que conquista, aqui não existem bonecos meramente simbólicos, nem pequenos amontoados de clichés, todas as personagens, quer apareçam uma ou 4 vezes, são seres de carne e osso credíveis e reconhecíveis, cujos diálogos simples (mas, nunca simplistas), perspicazes e, ocasionalmente, contundentes, revelam muito, dizendo pouco.

Naturalmente, nada disto funcionaria se o elenco não fosse exemplar, mas, “I Comete” brilha também nesse departamento. Quase todos os presentes são não-atores, habitantes da região que Tagnati (também ator e, por coincidência ou não, dono da performance mais impressionante do seu filme) descobriu no seu quotidiano e, talvez, esse seja mesmo esse o segredo destes intérpretes, plenos de naturalidade, que se apoderam das suas cenas de imediato, nunca permitindo ao público que duvide da sua autenticidade. Nalguns festivais de cinema, houve mesmo quem confundisse “I Comete” com um documentário e não é difícil entender porquê.

Trata-se de um filme tremendamente invulgar, que deve alienar os espetadores menos adeptos de experiências cinematográficas que ousem desafiar as convenções, mas, pode muito bem encontrar um fervoroso culto de fãs entre os mais aventureiros. “I Comete” é um dos acontecimentos mais singulares da canícula.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...