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CRÍTICA - "SEM DEIXAR RASTOS"


Em 2016, Jan P. Matuszynski foi duplamente distinguido no LEFFEST com os prémios de melhor filme e revelação para melhor realizador por "The Last Family", um retrato da família do pintor polaco Zdzislaw Beksinski (1929-2005). Apesar da premiação dupla, no referido festival e em muitos outros, o filme nunca chegou a ser distribuído nas salas portuguesas e Matuszynski desapareceu.

Isto até ao último ano, quando o Festival de Veneza selecionou a sua segunda longa-metragem para integrar a competição principal, chama-se "Sem Deixar Rastos" (em rigor, o título deveria ser "sem deixar marcas": o termo usado pelo polícia que ordenou aos colegas a agressão na barriga, em vez das costas, para evitar hematomas visíveis), um thriller político que convoca um dos momentos mais vergonhosos da história do sistema judicial polaco.


Varsóvia, 1983. Um caso de homicídio com motivações políticas abala a nação. Grzegorz Przemyk (Mateusz Górski que, num breve conjunto de cenas, consegue dar corpo a uma euforia juvenil que apenas acentua a tragédia que se segue), estudante, ativista e filho da poeta oposicionista Barbara Sadowska (uma performance dilacerante de Sandra Korzeniak), é espancado até à morte pela polícia por ter recusado mostrar o seu cartão de identidade.

Determinado a lutar para que seja feita justiça, Jurek Popiel (Tomasz Zietek, comovente como o herói relutante), melhor amigo de Grzegorz e a única testemunha do sucedido, torna-se o inimigo número um do Estado. Entre mentiras e ameaças, Jurek passa a ser a vítima de perseguição cerrada pelo aparelho mediático, jurídico e militar do regime opressivo do General Wojciech Jaruzelski (Robert Wieckiewicz, simultaneamente, repulsivo e sinistro), que tudo fará para o desacreditar e impedir de testemunhar em tribunal.


A morte, ou melhor, o assassinato de Grzegorz esteve longe de ser um caso isolado e o caso só não caiu no esquecimento porque o rapaz era filho de Sadowska, que utilizou o pouco poder que tinha para proteger Jurek e mobilizar a comunidade internacional para cobrir o evento. Em "Sem Deixar Rastos", Matuszynski recorreu ao livro de reportagem do jornalista Cezary Lazarewicz, para conceber um thriller extremamente detalhado, que nos guia clara e coerentemente pelo labirinto de corrupção que não olha a meios para consumir as vidas dos protagonistas.

Trata-se de um filme denso, complexo e revoltante, que nos coloca cara a cara com as angústias quotidianas de quem vive num regime totalitário, observando com paciência metódica a máquina conspirativa que se ergueu, em grandes salas e corredores frios, para obstruir a justiça e garantir que os culpados permaneceriam impunes. Desde a manipulação da família conservadora de Jurek a atos de espionagem e intimidação levados a cabo por uma rede de funcionários do terror, os exaustivos detalhes burocráticos deste mundo perverso são as linhas e a agulha com que Matuszynski cose a atmosfera dos anos 80 numa Polónia asfixiada.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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