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CRÍTICA - "BOA SORTE, LEO GRANDE"

Nancy (Emma Thompson), de 55 anos, é uma professora aposentada e viúva, para quem o sexo era um sacrifício e não uma fonte de prazer, chegando mesmo a sublinhar que o marido nunca lhe "deu" um orgasmo (a avaliar pelo pouco que nos vai sendo revelado, parece seguro assumir que o falecido não encarava o prazer da esposa como uma preocupação). No entanto, o envelhecimento levou-a a refletir acerca das suas experiências passadas (ou melhor, sobre a falta delas) e a contratar Leo Grande (Daryl McCormack), um acompanhante de luxo, que tem como missão, parafraseando o título de um dos primeiros filmes de Woody Allen (que, entre nós, se chamou "O ABC do Amor"), ensinar-lhe tudo aquilo que sempre quis saber sobre sexo, mas, nunca teve coragem de perguntar...

Dito assim, "Boa Sorte, Leo Grande" pode parecer uma comédia de usos e costumes à francesa, transposta para o contexto britânico, contudo, o que surpreende é a sua vibração dramática. Se há humor? Há sim, estamos mesmo perante um filme que consegue ser hilariante com bastante frequência, no entanto, a realizadora Sophie Hyde e a argumentista Katy Brand têm a parcimónia de utilizar as gargalhadas como uma ferramenta dúplice, que tanto atenua o duríssimo sentimento de melancolia que paira sobre os eventos que acompanhamos, como ajuda às próprias personagens a libertar-se dos condicionamentos sociais que lhes foram impostos, permitindo-lhes criar uma conexão genuinamente humana, na mais improvável das circunstâncias.

De facto, "Boa Sorte, Leo Grande" consegue a proeza de falar de sexualidade com uma franqueza desarmante e desopilante, que expõe preconceitos bacocos e desconstrói tabus antiquados, assumindo uma sensualidade visceral, que advém, precisamente, dessa falta de complexos. Em causa, está um encontro inusitado, entre dois indivíduos, que desenvolvem uma química muito particular, à medida que abrem a alma continuamente (aqui, a nudez vai muito além do físico), expressando o inconfessável na tentativa de receber um pouco de compreensão. É um retrato comovente e provocador, que nos formula um discurso bastante elucidativo em torno da forma como as duas gerações representadas percecionam a sexualidade.

Nesse processo, o meticuloso labor dos atores é absolutamente fundamental... e que atores! Emma Thompson é prodigiosa, dando corpo a uma personagem que é um fascinante poço de de contradições e nuances, naquela que é uma das suas performances mais impressionantes, e o jovem McCormack surpreende, partilhando uma química contagiante com a sua colega de cena e construindo um acompanhante de luxo que escapa a todos os clichés associados ao ofício.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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