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CRÍTICA - "CORTA!"

Numa fábrica devoluta roda-se um filme de zombies de baixo orçamento. Os técnicos estão exaustos, os atores desmotivados. Apenas o realizador parece possuir a energia necessária para dar vida a uma história mil vezes vista. Durante a preparação de uma cena particularmente difícil, a filmagem é perturbada por um ataque de verdadeiros mortos-vivos. Em êxtase por ter a oportunidade de capturar imagens verídicas destes carnívoros ressuscitados, o realizador obriga-os a continuar a filmar os acontecimentos, aconteça o que acontecer...

O realizador Michel Hazanavicius sempre gostou de evocar outros cineastas, incorporando elementos estéticos e narrativos de universos cinematográficos muito específicos nos seus filmes, a título de exemplo, citemos apenas a maneira como convocava o imaginário do mudo em "O Artista", porventura, a seu maior triunfo crítico e comercial. Em "Corta!" assistimos a algo similar, desta vez, homenageia-se (e satiriza-se) o terror splatter, parco (para não dizer pobre) em praticamente todos os sentidos, mas, sempre capaz de encher a barriga dos ferrenhos do género com mutilações à descrição e litros de sangue.


No entanto, "Corta!" é também um exercício de meta-cinema, dividido em três seções claramente delineadas, onde sobressai, acima de tudo, um retrato afetuoso do labor do cinema, colocando em cena as limitações, vicissitudes, conflitos e imprevistos que, inevitavelmente, dificultam qualquer processo de produção e fazem com que os profissionais do setor costumem dizer que "todos os filmes são um pequeno milagre".

Assim, "Corta!" assume-se como um elogio do espírito de equipa, do trabalho artesanal e, como não podia deixar de ser, do desenrascanço, no processo, providenciando belíssimos papéis a um elenco de excecionais atores, de onde é necessário destacar Finnegan Oldfield, no papel de um ator pedante, que nunca se coíbe de se intrometer na duríssima labuta do realizador (um Romain Duris divertidíssimo). Escolhido para inaugurar o Festival de Cannes, está aqui um delicioso naco de entretenimento sanguinolento, capaz de nos proporcionar sonoras gargalhadas, sem nunca abdicar de uma componente dramática surpreendentemente bem construída. Muito, muito recomendável.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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