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CRÍTICA - "TRIÂNGULO DA TRISTEZA"


Segunda Palma de Ouro consecutiva para o noruêgues Ruben Östlund, "Triângulo da Tristeza" proporciona-nos uma oportunidade de reencontrar o sentido de humor cáustico que nos habituamos a associar ao autor de títulos como "Força Maior" ou "O Quadrado".

Dividido em três capítulos (um dos muitos motivos por detrás do título, que se refere ao ponto do nosso rosto entre as sobrancelhas), situados em locais distintos, com ambientes (e códigos "sociais muito específicos), "Triângulo" começa por acompanhar um dia muito conturbado na vida de Charlie (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean, entretanto, falecida), um casal de modelos, com diferentes graus de sucesso (ele está em decadência, ela em ascensão), que se veem envolvidos numa discussão violentíssima em torno do que parece ser uma questão simples: quem paga a conta do jantar.


À partida, Östlund consegue um feito admirável, ainda o filme não nos introduziu à maioria das personagens que vamos seguir (excluindo Charlie e Yaya, todas as outras são "guardadas" para os capítulos subsequentes) e já o realizador e argumentista estabeleceu os dominós que se propõe a deitar a baixo. Os primeiros minutos começam por nos apresentar uma sátira certeira às campanhas publicitárias que se fazem no mundo da moda, daí podemos logo tirar vários subtemas que Östlund não se coíbe de esperar (como a superficialidade desse microcosmos), mas, o verdadeiro tema é a natureza performativa que tomou conta de praticamente todas as nossas interações quotidianas.

Nem os executivos da Balenciaga, nem os da H&M andam a perder sono por causa do aquecimento global ou do racismo na sociedade norte-americana, no entanto, assumir posições morais (mesmo quando não se possui o arcabouço intelectual e ético para o fazer devidamente) tornou-se num trunfo comercial igual a tantos outros, nesse contexto pobre e maniqueísta, acompanhar uma publicação de Instagram com um hashtag passou a confundir-se com um ato político legítimo.


No segundo capítulo, inteiramente situado num iate de luxo, onde Charlie e Yaya conhecem um rol de personagens, composto por, entre outros, um capitalista russo, acompanhado da mulher e da amante, um casal britânico de fabricantes de armas ou, como eles dizem, "instrumentos de precisão, utilizados para garantir a saúde de regimes democráticos em todo o mundo" e um marxista norte-americano (Woody Harrelson), durante uma viagem num iate de luxo, onde a entrada se encontra ao alcance apenas da fatia mais endinheirada da população (e, claro, dos empregados que lhes realizarão todos os seus caprichos durante o trajeto).

Östlund diverte-se a introduzir cada uma destas personagens, empregando o seu sentido de humor tipicamente anárquico para expor o caráter narcísico destes indivíduos, todos eles, figuras puramente transacionais (de Charlie e Yaya que vendem a sua imagem a quem estiver disposto a pagar por ela, sem pensarem duas vezes no assunto, ao casal de comerciantes de armas, que espalham destruição e morte pelo globo, sempre a uma distância confortável, permitindo-lhes nunca testemunhar a utilização dos seus produtos ou sentir na pele as ramificações desse mesmo uso), cujo dia-a-dia tem uma dimensão inegavelmente performativa, repleta de símbolos (como os relógios, recorrentemente presentes na narrativa) e códigos que ninguém se atreve a questionar, muito menos a quebrar.


Longe de nós adiantar o que sucede a seguir, portanto, digamos apenas que um determinado acontecimento espalhará o caos e desencadeará uma mudança na estrutura hierárquica. Nas mãos de um cineasta menor, este podia até ser o momento em que "Triângulo da Tristeza" cai no maniqueísmo, mas, felizmente, Östlund, consciente da velha máxima que nos informa de que "o poder absoluto corrompe absolutamente", nunca se socorre de ideias "reconfortantes" sobre a virtuosidade ética que assiste os pobres ou a bancarrota moral em que vivem os ricos. Aliás, "Triângulo" é mesmo uma negação dessas ideias simplistas, reforçando a crença de Thomas Hobbes de que "o homem é um lobo para o homem". Quem tem poder reina e, felizmente para uns, infelizmente para outros, a natureza do poder é sempre transitória...

Nesse sentido, o cinema de Östlund continua a conseguir ser "tudo para toda a gente", ou seja, dividir-se entre o entretenimento cómico, selvagem e surpreendente, e a ruminação intelectual provocadora e cheia de nuances, sempre alicerçada no trabalho extraordinariamente complexo dos elencos internacionais que reúne. Aqui, há muitos nomes para nomear, mas, quem nos rouba o coração é Harris Dickinson, como o modelo iludido, que vai sendo lentamente introduzido aos horrores do mundo (e, no processo, senão desenvolve uma consciência, entende, pelo menos, que essa possibilidade redentora existe) e Woody Harrelson, como o capitão do navio, um marxista errante (ou, aplicando as suas próprias palavras, "um socialista merdoso"), que se evidencia como a alma do filme e o quase monólogo que tem durante uma das sequências mais inolvidáveis do filme (uma tempestade marítima, que coloca meio navio a vomitar incontrolavelmente) é um momento chave para entender o raciocínio de Östlund.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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