Avançar para o conteúdo principal
Crítica: Os Gatos Não Têm Vertigens, de António Pedro-Vasconcelos


Um dos problemas mais significativos da produção cinematográfica portuguesa (e sim eu sei que são muitos, mas para não nos alongarmos falemos apenas deste) é que a maioria dos cineastas não estão de maneira alguma interessados em trabalhar as suas obras de uma maneira acessível a um público mais alargado e o resultado é um alinhamento de obras que por melhor que sejam, não conseguem chegar ao resto do comum dos mortais, talvez por serem demasiado pessoais e, consequentemente, se tornarem impenetráveis ao espetador, por serem demasiado "alternativas", ou (em alguns casos) por se tratarem de trabalhos algo pedantes e pretensos. E é talvez por isso que a nova obra de António-Pedro Vasconcelos se torna uma curiosa surpresa, ou seja, um filme caloroso que aborda temas de facto importantes na nossa sociedade atual de forma acessível, e tudo isto sem se estupidificar (isto porque ao contrário do que alguns pensam hoje em dia, é possível fazer obras comerciais e, mesmo assim falar sobre qualquer tema sem baixar a inteligência da trama).
Porém, importa salientar que apesar de estarmos perante um argumento bem estruturado, que faz uma interessante gestão entre a seriedade a que o tema obriga, e o alívio cómico, "Os Gatos Não Tem Vertigens" é acima de tudo um "filme de atores". Isto porque o que fica na memória da audiência é a dupla de protagonistas habilmente interpretados por Maria do Céu Guerra e João Jesus que aqui partilham uma química inegável e oferecem um certo carácter genuíno e realista a toda a obra.
Dito isto se há uma imperfeição que pode ser referida no meio disto tudo é a forma como o argumento não consegue resistir à ocasional tentação de enveredar por certos clichés novelescos que retiram algum impacto a determinados momentos (porém tal é evitado, por várias vezes, e portanto não é propriamente uma imperfeição grave).
E no todo "Os Gatos Não Tem Vertigens" é acima de tudo um filme genuíno sobre o presente, o "aqui e agora" português, os problemas que nós espetadores como seres humanos vemos diariamente ou até enfrentamos hoje em dia, e é também uma espécie de celebração do ser humano e da sua constante busca pela felicidade (o que se torna surpreendente, tendo em conta a proeminência que os ideias niilistas têm vindo a ocupar no cinema atual, especialmente em Portugal) e tudo isso trabalhado de uma forma inteligente, mas acessível, que alia de forma curiosa o melodrama clássico e a crónica social contemporânea, obtendo um resultado final bastante positivo.
8/10

Comentários

  1. Concordo plenamente com o teu comentário. Trata-se de um filme tocante, que reflete a realidade de uma forma surpreendente. Através da hábil interpretação de Maria do Céu Guerra e João Jesus vivenciamos alguns dos problemas mais graves da nossa sociedade: a solidão, o sentimento de perda, a delinquência, a miséria...É impossível ver esta película e ficar indiferente. O cinema português está, indubitavelmente, de parabéns.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...