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"Alpha", de Albert Hughes


Estará a valorização industrial e mediática dos efeitos visuais está a matar a arte da narrativa? Enfim, o retumbante sucesso financeiro de títulos redundantes e entediantes como “Mundo Jurássico: Reino Caído” ou “Homem-Formiga e a Vespa”, parece mesmo evidenciar a possível concretização desse triste pensamento. No entanto, importa evitar a praga das generalizações, e reconhecer que ainda existem eloquentes contadores de histórias no interior dos estúdios americanos. Genuínos artesãos, com inteligência suficiente para entender que existem diferenças fundamentais entre personagens de carne e osso e clichés ambulantes, que aparentam existir somente para fugir de explosões digitais. 


Exemplo modelar disso é “Alpha”. Quinta longa-metragem de Albert Hughes enquanto cineasta, e primeira que não assina a meias com o irmão Allen (os filmes anteriores dupla, surgiam sempre como sendo da autoria dos The Hughes Brothers), contudo, mantêm-se todos os delicados traços que tanto apreciávamos nos seus trabalhos anteriores, especialmente, a capacidade de construir uma narrativa, simultaneamente, complexa e simples, em torno de uma temática muito especifica. Por exemplo, no anterior, “O Livro de Eli”, convocavam-se as componentes mais clássicas do cinema pós-apocalíptico para meditar sobre a fé, e as muitas formas como a existência da mesma pode moldar a existência de um individuo. Seguindo essa linha de pensamento, ou seja, a vontade de perseguir “grandes temáticas”, a sua nova obra viaja até à Europa pré-histórica (há 20 mil anos, para ser mais preciso), para acompanhar um jovem, que se perde da tribo, durante uma expedição de caça. Dado como morto, e tendo como principal problema, as condições agrestes que estão prestes a tomar de assalto o local onde se encontra (a última idade do gelo aproxima-se), o nosso herói parece fadado a morrer sozinho, mas, depois conhece um lobo…



O trabalho do elenco é globalmente impressionante, personificando os cavernícolas em questão de maneira admirável, criando humanos, cujos trejeitos quase animalescos, nunca caiem na caricatura. No entanto, não há como nega-lo, a componente mais bela de “Alpha” é a mise en scène de Hughes, construindo a epopeia do menino inocente, que se descobre homem e aprende a navegar numa natureza, que está para lá do seu controlo (o início já sugere isso mesmo, quando os caçadores armados são vistos a caminhar com ar estóico e imponente, como se ali exercessem qualquer tipo de poder, quando na verdade não passam de criaturinhas mínimas, num contexto muito mais vasto). Também, por isso, a presença do lobo Alpha é tão importante, ele que começa como um inimigo e lentamente se torna num aliado, partilha com o protagonista alguns dos momentos mais genuinamente arrepiantes de uma fita cheia deles. Acima de tudo, é uma aventura como há muito não víamos, que nos transporta literalmente até outro tempo, para nos encantar com um conto de amizade intemporal.




Realização: Albert Hughes


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