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"Zoe", de Drake Doremus


Quem conhecer o cinema de Drake Doremus, certamente reconhecerá nele, um obstinado representante de uma certa tradição melo dramática, que encontra as suas raízes simbólicas em autores como Douglas Sirk ou David Lean. Dito de outro modo, as suas longas-metragens procuram questionar os enigmas do ser humano, por via de pequenos contos românticos, eternamente assombrados por uma melancolia que lhe é muito particular. O mesmo volta a verificar-se em “Zoe”, subtil variação em torno das matrizes mais clássicas da ficção científica, que consegue mesmo reconfirmar o nome do realizador californiano, como um eloquente retratista das mais intimas convulsões amorosas, e relançar uma antiga questão de ordem filosófica: poderão os “produtos” da ciência sobrepor-se aos dos seus criadores humanos?


No centro dos acontecimentos está um profissional no campo da Inteligência Artificial (Ewan McGregor), que encara o amor enquanto algo impossível. Para si, os seres humanos vão sempre desiludir-se mutuamente. Como tal, dedica a sua existência à criação daquilo que pensa ser o futuro: a conceção de robôs sintéticos, que nunca ninguém conseguiria distinguir das pessoas que serão programados, para amar (os mesmos surgem mesmo como espelhos cristalinos da condição humana). No entanto, esse trabalho vai lança-lo numa odisseia francamente perturbante, à medida que vai experienciando os mais convulsivos estados de alma. Desse modo, encontramos no comovente romantismo de “Zoe”, uma qualidade dupla. Por um lado, a película de Doremus evidencia-se como um acontecimento, capaz de integrar parâmetros da vida vivida, enquanto celebra a possibilidade de uma vida imaginada. Por outro (talvez, por consequência da anterior, é certo), o todo assume-se, em ultima instância, como um olhar gentilmente contundente sobre a sensação imediata e inquietante de habitarmos num planeta, onde a proliferação de canais de comunicação, foi acompanhada pelo crescimento de uma imensa rede de solidões. Filme do presente, para o presente, portanto.


Realização: Drake Doremus

Argumento: Rich Greenberg

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