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"BlacKkKlansman: O Infiltrado", de Spike Lee


Autor de títulos intemporais como “Não Dês Bronca”, “Passadores” ou “Malcolm X”, Spike Lee permanece interessado num cinema de imediatas ressonâncias sociais e políticas, quase sempre centrado nas convulsões da história dos afro-americanos, no interior dos Estados Unidos. Por vezes, através de contos delicadamente realistas sobre o quotidiano muito específico de personagens fictícias (exemplifiquemos com “Os Bons Amantes” ou "A Febre da Selva”), outras, com extraordinárias histórias verídicas, que confrontam o público com memórias essenciais dos conflitos raciais na América, como volta a acontecer no admirável “BlacKkKlansman: O Infiltrado”.


Tudo começa no domínio do burlesco, com uma abertura que revela de imediato um dos maiores prazeres do filme: reavaliar a representação das muitas reivindicações sociais, e até conflitos bélicos, associados à luta da comunidade negra por igualdade, na cinematografia americana dita “clássica”, com um breve excerto de “E Tudo o Vento Levou”, onde acompanhamos um plano de grua dos soldados feridos de Atlanta, que culmina na bandeira dos estados da Confederação sulista, cuja secessão desencadeou a Guerra Civil (1861-1865). Passado esse pequeno prólogo (continuado por uma pequena, contudo, arrepiante participação de Alec Baldwin), seguimos para Colorado Springs, em 1978, altura em que o departamento de polícia regional recebeu o primeiro detetive negro, Ron Stallworth (John David Washington), um recruta ousado, que conseguiu infiltrar-se no Klu Klux Klan, devido a um engenhoso plano, que lhe permitia comunicar por telefone com os membros da “Organização”, e ser substituído por um colega branco, Flip Zimmerman (Adam Driver), na hora de participar nas reuniões da mesma.


O argumento nunca deixa que o poder da palavra se desvaneça (aliás, uma característica transversal à obra de Spike Lee), criando uma intrincada teia dramática em que cada uma das personagens se definirá sempre pela sua irredutibilidade humana. Nesse contexto, torna-se também necessário, valorizar um trabalho de mise en scène tão estilizado como subtil, que sabe privilegiar esse requintado trabalho de escrita, e evocar a linguagem de um género cinematográfico um tanto ou quanto esquecido (o blaxploitation), para encenar uma história dos nossos dias, em que a xenofobia vai ganhando terreno mundialmente, e a insidiosa presidência de Donald Trump, veio evidenciar um racismo que andava oculto (durante os anos de Obama, uma imprensa intelectual e bem-pensante tentava escapar dos horrores omnipresentes do preconceito, ao falar ingenuamente numa América pós-raça, onde a discriminação não voltaria nunca a assumir-se), e já que mencionámos o nome do empresário tornado estadista, porque não mencionar que o autor aproveita mesmo para estreitar os paralelos entre o tempo retratado e o presente, incluindo imagens francamente chocantes das agressões a partidários da supremacia branca, em 2017, devidamente seguidas pelo desconcertante discurso de Trump, que reconhecia a existência de “boas pessoas” em “ambos os lados”, acentuando a necessidade de filmes como este, que se atrevam a dizer aquilo que têm para dizer, sem medos. “BlacKkKlansman: O Infiltrado” é mesmo um dos acontecimentos máximos de 2018, portanto, saibamos recebê-lo como merece.



Realização: Spike Lee


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