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"À Luz da Noite", de David Wnendt


Por vezes, há cineastas que nunca conseguem escapar ao seu passado. Isto é, passam carreiras inteiras a tentar imitar o filme que os colocou no mapa. Esse não é o caso do alemão David Wnendt. O seu primeiro sucesso internacional foi o grotesco Wetlands, onde se propunha a acompanhar a vida íntima de uma jovem que recusava quaisquer cuidados de higiene. Depois, espantou os seus conterrâneos com uma comédia burlesca que imaginava o que aconteceria se Adolf Hitler acordasse no século XXI. Resumindo de forma necessariamente genérica, Wnendt tem um certo gosto pela provocação. Por isso, é tão surpreendente encontra-lo aos comandos de um filme tão contido como À Luz da Noite. Um olhar gentilmente poético sobre a vida de uma aspirante a pintora (Jenny Slate) que abandona a sua vida caótica em Nova Iorque, para trabalhar como assistente de um artista a viver num regime de reclusão autoimposto na Noruega rural. Com uma premissa assim, seria fácil cair nas armadilhas clássicas das narrativas esperançosas com pendor de autoajuda que tantas vezes condenam os candidatos ao estatuto de feel good movies, contudo, Wnendt é mais inteligente que isso. À Luz da Noite mantêm uma sobriedade formal e narrativa total, que permite ao humor e à melancolia que coexistam, sem se anularem mutuamente, estabelecendo uma harmonia que nos envolve rapidamente e nos leva a simpatizar com as dores existenciais (afinal, tão comuns) destas personagens à deriva.

Texto de Miguel Anjos

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