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Crítica: "A História do Amor" ("The History of Love"), de Radu Mihaileanu



É sempre com muito prazer, que recebemos notícias do franco-romeno Radu Mihaileanu, cineasta pouco comum no panorama contemporâneo, que consistentemente tem abordado questões de identidade e exílio (muito próximas da sua própria condição, como imigrante de origem judia, num país que é manifestamente diferente do seu), com uma inteligência, acima do normal, que é acompanhada por um tom permanentemente melancólico e, talvez até desencantado, só ocasionalmente interrompido, com ligeireza, pelo humor subtil, mas, genuíno e deveras honesto. À sexta longa-metragem, notamos um regresso aos momentos mais marcadamente emotivos da sua curta filmografia, neste belíssimo melodrama, onde vai compondo uma delicada teia de personagens e eventos, na qual as dolorosas memórias de um sobrevivente da ocupação nazi da Polónia no começo da década de 40, que rumou em direção a Nova Iorque, funcionam como "catalisadoras" para que uma série de contos humanistas, possam então florescer. Descrevendo o ambiciosíssimo empreendimento que Mihaileanu aceitou de forma mais simples, digamos que este procurou alcançar um drama romântico, que deva menos à evocação histórica (embora esses elementos da mesma, aqui também existam) e mais a uma constante reencenação do impulso amoroso, enraizada na sua perene e visceral verdade e, por conseguinte, centrada nos muitos outros sentimentos, que dela derivam. Um projeto assim, como será mais ou menos óbvio, necessitaria sempre de um autor invulgar e, felizmente encontrou-o. Nas mãos do autor de títulos como Vai e Vive ou O Concerto, A História do Amor ganha o fulgor de um quadro vivo (os primeiros instantes a preto e branco, que só muito lentamente vão sendo coloridos, são um exemplo muito conclusivo disso mesmo), que nos engole na sua imensidão e, vem reafirmar o peso e poder das palavras, num filme que parece mesmo apaixonado por um romantismo muito literário (embora, obras como esta ou A Cidade Perdida de Z, de James Gray, se comecem a apoderar dele como matéria cinematográfica), que depois parece mesmo ser consumado por uma obsessão com ruínas, sejam as de uma cidade aniquilada, onde outrora houveram momentos de uma felicidade genuína à flor da pele ou, de uma relação amorosa encerrada demasiado cedo. E, nesse sentido, esta é mesmo uma história sobre o nascimento do amor, não só como um sentimento, mas como um sonho, que irremediavelmente dominará tudo o resto, para o bem e para o mal. Grandiosíssimo filme, que não merecia desaparecer para não mais deixar rasto na avalanche de lançamentos de verão.


Realização: Radu Mihaileanu
Género: Romance, Drama
Duração: 134 minutos

Comentários

  1. Concordo plenamente com as tuas palavras Miguel, o filme é soberbo, arrebatador, dos melhores que vi nos últimos tempos. Recomendo verdadeiramente, pois é imperdível.

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