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Crítica: "Wind River", de Taylor Sheridan




Taylor Sheridan, argumentista de Sicario: Infiltrado e Hell or High Water (por este último, conseguiu mesmo uma nomeação ao Óscar), continua a trabalhar em pequenas produções, eternamente enraizadas numa tradição manifestamente naturalista, concebendo narrativas mais ou menos ligadas às matrizes clássicas do cinema policial, que transportam consigo sinais perturbantes da sociedade americana contemporânea. Esta semana, estreia-se como cineasta, numa longa-metragem, que é simultaneamente um thriller elegante e sofisticado, um olhar sobre as relações entre colonos e índios, eternamente assombradas pela violência de um passado nunca inteiramente resolvido e, um conto doloroso e poético, centrado nos fantasmas do luto. Nele, acompanhamos um homem solitário, que trabalha como caçador na reserva índia titular, onde conheceu a sua ex-mulher e, é reconhecido pelos locais como um membro regular daquela comunidade, apesar do contrário ser claramente evidenciado pela sua raça (ele é um homem branco, proveniente da cidade mais próxima), que se junta a uma inexperiente agente do FBI, para investigar o homicídio de uma jovem nativa, que o próprio encontrou morta na neve, numa das suas patrulhas diárias. E, nesse sentido, este crime acaba mesmo por funcionar como uma "porta aberta" para um retrato social da zona em causa, um cenário desolado, permanentemente coberto de uma neve, que parece nunca parar de cair. Desta forma, entramos num filme de atmosfera trabalhada, interessado num retrato quase místico do lugar, que se recusa a amontoar gratuitamente sequências de ação (existe apenas uma, por sinal, extraordinária e plena de uma tensão sufocante), movendo-se antes no tecido emocional dos acontecimentos, evidenciando assim o humanismo deste singularíssimo criador, sempre apostado em diálogos mais íntimos, onde encontramos nas palavras uma espécie de contrapeso da violência exterior, de alguma maneira observando as múltiplas complexidades do ser humano e, especialmente da sua relação com os que o rodeiam (as fronteiras da masculinidade, as dificuldades na comunicação, são lembremos temáticas fulcrais do seu trabalho) e, o meio em que se inserem. Isto, aliado a um trabalho uniformemente notável dos atores, sendo Jeremy Renner, a cruzar força, com uma latente vulnerabilidade, um destaque óbvio e, temos um dos melhores filmes do ano e, uma nova prova de que tempos em Sheridan, uma das vozes mais entusiasmantes do panorama atual. Além do mais, dá vontade de dizer, que pelas suas ligações profundas que mantem a estas pessoas e locais, está aqui e, não no ruidoso aparato dos blockbusters, o cinema moderno mais visceralmente americano.


Realização: Taylor Sheridan
Argumento: Taylor Sheridan
Género: Drama, Thriller
Duração: 107 minutos

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